O marxismo de Pagu

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Escritora, jornalista, tradutora, desenhista e diretora teatral, participou do movimento antropofágico modernista e foi militante do Partido Comunista do Brasil e do Partido Socialista, tendo atuado também em órgão secreto da Internacional Comunista

Por Dicionário Marxismo na América,




Por Walnice Nogueira Galvão *, compartilhado de Fórum

O marxismo de Pagu
Pagu. Gravura: Marcelo Guimarães Lima

PAGU; Galvão, Patrícia Rehder (brasileira; São João da Boa Vista-SP, 1910 – Santos-SP, 1962).

1 – Vida e práxis política

Paulista do interior, Patrícia Rehder Galvão, que seria conhecida como Pagu, foi criada na capital, para onde seus pais se transferiram quando ela tinha 2 anos. Era filha de Adélia Rehder e Thiers Galvão de França, advogado e jornalista, sendo Pagu a terceira de três irmãos: Conceição, Homero e Sidéria (esta última seria pelo resto da vida uma aliada, confidente e cúmplice). Iniciou os estudos no Grupo Escolar da Liberdade, à rua Galvão Bueno.

Após frequentar a Escola Normal do Brás, bairro em que residia, formou-se em 1928 pela Escola Normal Caetano de Campos, na Praça da República (Centro de São Paulo), diploma que habilitava ao ensino de crianças, na escola primária. Fenômeno recente no panorama brasileiro, a “normalista” abria a perspectiva da emancipação feminina através do trabalho. Simultaneamente, Pagu assistiu aulas no Conservatório Musical.

Por este tempo, Pagu foi apresentada por Raul Bopp a Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, figuras de proa do Modernismo. Com sua formosura juvenil, charme e comportamento inconvencional, Pagu abalou o cenáculo modernista; a exuberância da cabeleira, a boca polpuda, os olhos derramados – registrados no célebre poema que lhe dedicou Raul Bopp, “Coco Pagu” – tornaram-se sua marca registrada. Recém-saída de um concurso de beleza em sua cidade natal, a moça foi tragada pelo turbilhão da sociabilidade modernista, brilhando em festas e saraus paulistanos nos quais declamava a poesia de seus novos amigos.

Em 1929, Pagu e Oswald de Andrade passaram a viver juntos. Num gesto típico de escândalo modernista, celebrariam sua união numa cerimônia de casamento ao pé do jazigo da família de Oswald, no Cemitério da Consolação. Dessa união, com cinco anos de duração, nasceu um filho, Rudá Poronominare Galvão de Andrade. Pagu participaria intensamente da fase antropofágica do Modernismo e prestaria colaboração à Revista de Antropofagia com desenhos, contos e poemas.

No ano seguinte, ela viajou de navio a Buenos Aires, no intuito de participar de um recital e tentar encontrar Luiz Carlos Prestes, que ali vivia em exílio, mas não o encontrou. Entretanto, durante o percurso, fez amizade com Zorrilla de San Martin e travou contatos na área literária com o grupo de escritores da revista Sur: Jorge Luis Borges, Victoria Ocampo, Eduardo Mallea. À volta, ela trouxe livros e outros materiais marxistas. Já em São Paulo, Astrojildo Pereira, intelectual fundador do PCB, procura o casal. Pagu, cativada, passou a traduzir panfletos a seu pedido, declarando com entusiasmo dedicar-se doravante à “causa dos oprimidos”.

Com a crise econômica que estourara em 1929, abriu-se passo a uma reconfiguração de forças, com radicalização de intelectuais, à direita e à esquerda. Encerrava-se a década de eclosão e fastígio do Modernismo, baseada numa fusão de vanguardistas com mecenas cafeicultores. Nesse processo, em 1931 Patrícia e Oswald filiaram-se ao Partido Comunista do Brasil (PCB) e passaram a militar pela revolução.

Ainda em 1931, o casal fundou o tabloide O Homem do Povo, que duraria apenas oito números. Hostilizado pelos estudantes da vizinha Faculdade de Direito – que chegaram a invadir a redação –, acabou proibido por ordem policial. Após o fechamento do periódico, Pagu e Oswald decidiram embarcar para Montevidéu, onde finalmente se encontraram com Prestes. Juntos, passariam dias conversando, tendo formado uma forte conexão. Pagu data deste encontro sua conversão definitiva à luta política socialista, tal o poder de convicção do líder. Sentindo-se ignorante, daí em diante Pagu procurou estudar, e mergulhou na militância.

Sua primeira prisão se deu nesse ano de 1931, em Santos – maior porto do Brasil, escoadouro da riqueza principal de então, o café –, quando participou de uma greve após ser designada para militar na organização do Socorro Vermelho. Logo solta, trabalhando como operária, discursou no palanque do comício de uma greve de estivadores e foi novamente presa quando acudia um manifestante baleado pela polícia. O episódio ganhou primeira página em A Tribuna, de Santos, com o nome de Patrícia Galvão em manchete sensacionalista e acusadora. É deste evento que data sua reputação de ser a primeira mulher presa política no Brasil. Contudo, a reação do PCB diante do escândalo armado pela mídia foi negativa: a origem pequeno-burguesa de Pagu seria atacada num manifesto que desautorizava sua atuação – como agitadora individual – no palanque do comício.

O período que se segue é de dificuldades para Pagu e Oswald. A polícia mantém constante vigilância sobre suas ações, forçando-os a redobrar os cuidados. Então, em 1932, o PCB recomenda a transferência dela para o Rio de Janeiro. Iniciou-se então sua fase carioca. Vivendo em um cortiço, viu-se proibida pelo partido de trabalhar no Diário da Noite, por ser esta uma atividade considerada “intelectual” – enquanto o PCB considerava necessário que ela passasse por um processo de “proletarização”. Depois de procurar em agências e tentar colocações como empregada doméstica ou de fábrica, conseguiu um posto como lanterninha de cinema na Cinelândia, passando a agir na organização de um sindicato dos trabalhadores de cinema e casas de diversão. Descoberta pelos patrões, foi despedida, indo então trabalhar como operária numa metalúrgica. Em seguida, foi nomeada para a Conferência Nacional do PCB e designada para participar da segurança – o que lhe trouxe muita alegria, reforçando sua fé na luta política e no comunismo.

Nessa metalúrgica, ela organizou duas células, mas, ao adoecer, perdeu o emprego, ficando em situação precária. Assim, o PCB ordenou que voltasse a São Paulo e passasse a militar no meio intelectual. Corria o ano de 1932; na esteira do movimento separatista de São Paulo, ela e Oswald receberam ordem de prisão e passam à clandestinidade. Neste contexto, o partido – que então vivia sua fase “obreirista” (de valorização de operários na direção, em detrimento de intelectuais) – abriu uma campanha contra os “intelectuais pequeno-burgueses”, gerando a indignação de Pagu, que recebe um “bilhete de afastamento”.

Recolhe-se então para escrever, refletindo sobre sua experiência como trabalhadora proletária. Em 1933, sob o pseudônimo de Mara Lobo, publicou Parque industrial: romance proletário, obra ao mesmo tempo comunista, modernista e feminista.

Em seguida, Pagu, Oswald e o filho mudaram-se para o Rio, indo morar na ilha de Paquetá. Ela buscou isolamento e aguardou que o Partido a chamasse de volta. Com efeito, logo seria nomeada para um órgão secreto da Internacional Comunista – ao qual mais tarde se referiria como “Comitê Fantasma”. Sentiu-se honrada, mas acabou por se insurgir quando recebeu a missão de obter informações sobre o governo, usando de seu poder de sedução. Afastando-se deste comitê clandestino, reintegrou-se à militância ordinária, antes de receber ordens de viajar, saindo do Brasil.

Logo encetou seu grande périplo (1933-1934). Tendo visitado Estados Unidos, Japão, China e Rússia, além de países da Europa, da viagem enviaria correspondências para o Correio da Manhã e o Diário de Notícias, ambos do Rio, e para o Diário da Noite, de São Paulo. Nesse itinerário, teve contato com surrealistas franceses e ficou admirada com as realizações da Revolução Russa, apesar da miséria que também observou. Uma vez em Paris, Pagu mergulhou no ativismo político, tratando de afiliar-se ao Partido Comunista Francês. Era a época de força das esquerdas, coligadas no Front Populaire, e da luta contra o nazifascismo em ascensão. Foi hospedada pela cantora modernista brasileira Elsie Houston, que era casada com Benjamin Péret, do núcleo surrealista. Entrou assim em contato com André Breton, Paul Éluard, René Crevel, Louis Aragon. Tornou-se aluna da Université Populaire, tendo aulas com, entre outros, Politzer e Paul Nizan, fazendo cursos de Economia Política e Materialismo Histórico. Trabalhou como tradutora e redatora do periódico L´Avant-Garde, e participou de grupos de autodefesa, que faziam segurança nos comícios. Porém, identificada pela repressão, acabaria por ser presa e deportada ao Brasil, graças à intervenção do embaixador Souza Dantas. Por esta época, separou-se definitivamente de Oswald.

Foi no rescaldo do Levante Comunista de 1935 que Pagu, arribando de sua viagem, seria presa mais uma vez. Em 1937 conseguiu fugir – do Hospital da Cruz Azul, para onde fora transferida –, sendo porém novamente presa em 1938. Processada e condenada pelo Tribunal de Segurança Nacional, só seria libertada em 1940, deixando o cárcere exaurida e muito magra.

Rompeu então com o PCB, que por sua vez a expulsou por insubordinação. Em 1940, iniciou-se sua união com Geraldo Ferraz, escritor e jornalista, com quem viveria até o fim de seus dias. Da união nasceria outro filho, Geraldo Galvão Ferraz, em 1941.

Em 1942, retomou, para não mais deixá-lo, o jornalismo, seu ganha-pão e canal de expressão. Começou a trabalhar na agência de notícias France-Presse em 1945, ali permanecendo por um decênio, e entrou para o corpo de redação da Vanguarda Socialista, fundada por Mário Pedrosa, que congregaria a nata da intelectualidade trotskista. Ainda neste ano, publicou A famosa revista, livro escrito a quatro mãos com o esposo. Já mais distante da estética modernista de Parque industrial, abandonou o fragmento em prol do discurso contínuo, mantendo todavia uma linguagem inovadora e incisiva, demolidora de lugares-comuns.

Depois, Pagu ingressou no pequeno Partido Socialista, pelo qual foi candidata a deputada estadual em 1950. Na campanha, publicou a plaquete Verdade e liberdade, expondo os motivos que a levaram a romper com o PCB. Entre 1952 e 1953, frequentaria a Escola de Arte Dramática de São Paulo, hoje instalada na ECA-USP, para a qual deixaria em legado seus livros de teatro.

À época, escreveria em vários jornais da grande imprensa e acabaria por fixar residência em Santos, onde viveu desde 1954 até morrer – acompanhando sempre a cena cultural, visitando exposições, teatros, concertos, lendo livros novos e velhos, água para o moinho de seus escritos.

Nessa fase de sua vida – a partir da saída da prisão em 1940, mas intensificando-se a partir da mudança para Santos –, produziu crônicas, poemas, crítica literária, traduções de fragmentos, comentários de artes plásticas, de teatro e de televisão, artigos de política nacional e internacional. Escreveu também sobre música de vanguarda nacional e estrangeira, promovendo jovens compositores eruditos de Santos, como Gilberto Mendes e Willy Corrêa de Oliveira, que então estreavam. Pelo resto da vida se dedicaria ao jornalismo cultural e ao ativismo institucional em Santos, onde presidiu a União dos Teatros Amadores de Santos em 1951, e fundou o Centro de Estudos Fernando Pessoa em 1955. Fundou ainda a Associação de Jornalistas Profissionais de Santos e o Teatro Universitário de Santos, em 1956. Com Paschoal Carlos Magno, criou em 1958 o Festival de Teatro Amador de Santos. Nesse período, dirigiu duas montagens teatrais em Santos com turnê em São Paulo – Fando e Lis, de Arrabal, e A filha de Rapaccini, de Octavio Paz –, e traduziu A cantora careca, de Ionesco, para encenação na Escola de Arte Dramática de São Paulo.

Passada a fase modernista e militante, encerrada com sua libertação do cárcere – após as experiências de proletarização e clandestinidade que viveu –, a autora comunista e feminista romperia as amarras partidárias. Mas seu espírito libertário continuaria a empunhar a bandeira do socialismo e do modernismo – movimento de que guardou o espírito crítico irreverente, o amor às artes e até, às vezes, a iconoclastia.

Em 1960, acometida por um câncer de pulmão, Pagu viajou a Paris para tentar um tratamento, que não teve bom resultado. Decepcionada com a situação, decidiu acabar com sua vida, mas a tentativa de suicídio falhou. Ela então regressou ao Brasil, e em 12 de dezembro de 1962 morreu em Santos, vítima da doença. Após seu falecimento, a cidade onde se fixou e tanto labutou na última fase de vida fez-lhe justa homenagem, ao consagrar e batizar a Casa de Cultura Patrícia Galvão, da prefeitura de Santos. Mais tarde, em 2011, Pagu seria agraciada com a Medalha do Mérito Cultural, conferida pela presidenta da República, Dilma Roussef.

2 – Contribuições ao marxismo

Militante política, Pagu entrou no Partido Comunista em 1931. No PCB, participou do Socorro Vermelho, agitou greves e ajudou a organizar sindicatos. Foi também membro do comitê clandestino ultrassecreto da III Internacional. Logo de seu ingresso no partido, com seu companheiro Oswald editou o periódico O Homem do Povo, no qual publicou artigos, histórias em quadrinhos e desenhos. Aí, escreveu a coluna significativamente intitulada “A mulher do povo”, de tom panfletário, em que fustigava a burguesia e as suas instituições. Reservava virulência maior para as grã-finas e outras mulheres ociosas, sobretudo as “feministas de elite”, cujas pautas se limitavam à reivindicação da liberdade sexual feminina e do direito ao voto de “mulheres cultas”, negando com isto a participação das trabalhadoras com menos acesso à educação.

Quando caiu no torvelinho da sociabilidade modernista, Pagu passou a frequentar festas e saraus, nos quais declamava poesia moderna. Contudo, com a radicalização, marcada pela entrada no PCB, sua vida mudou. Passou a militar intensamente, em São Paulo, Santos e Rio de Janeiro, sendo presa várias vezes. Dentre elas, ficou presa em São Paulo, nos famigerados presídios Maria Zélia e Paraíso, e no Rio, na não menos famigerada Casa de Detenção, em cuja Célula 4 estiveram célebres comunistas como Nise da Silveira, Eneida de Moraes, Maria Werneck de Castro, Elisa Berger e Olga Benario Prestes – todas levadas de roldão pela repressão que se seguiu ao Levante Comunista de 1935. Graciliano Ramos, um codetento, fala delas em Memórias do cárcere (1953).

No final dos anos 1930, Pagu já estava desiludida com a burocracia partidária. Sofrendo críticas do PCB por algumas de suas ações, um panfleto do Comitê Central, de 1939, intitulado Contra o trotskismo lhe fez graves acusações. Sob o intertítulo “Os que são expulsos agora: Patrícia Galvão”, o texto declara que Pagu não pertencia à agremiação desde 1937, tendo sido expulsa por insubordinação e “trotskismo” – à época acusação grave, equivalente a traidor e venal.

Após o rompimento com o Partido, nos anos 1940 seu ânimo ativista passaria a anti-stalinista, aproximando-a dos trotskistas. Escreveria a quatro mãos com Geraldo Ferraz o romance A famosa revista (1945), uma sátira ao PCB, cujos males ela aponta: burocratismo e autoritarismo, além do assédio de que foi alvo. Esses traços também serão ressaltados na plaquete Verdade e liberdade, em que explicita sua plataforma quando candidata a deputada estadual pelo pequeno Partido Socialista de São Paulo, em 1950. Não estava mal rodeada: também foram candidatos a deputado estadual por este partido, na mesma época, figuras como Antonio Candido, Sérgio Buarque de Holanda e Decio de Almeida Prado, entre outros.

Pagu se referiria muitas vezes, no futuro, a suas experiências políticas, mostrando repúdio ao Estado Novo e à ditadura de Getúlio Vargas (1937-45), seus algozes. Mas criticava também o PCB, a quem atribuía desmandos e arbitrariedades, que se expressavam nas tarefas perigosas que lhe impuseram, sem respaldo logístico, levando aos maus tratos que sofreu em várias cadeias. Essa atitude crítica vem à tona tanto em A famosa revista e em Verdade e liberdade, como em seus artigos jornalísticos.

Nas décadas de 1940 e 1950, ela gravitaria na órbita de Mário Pedrosa e da Vanguarda Socialista, e desde então se dedicaria ao jornalismo cultural e ao ativismo institucional. Defendeu sistematicamente as vanguardas e a experimentação artística, consagrando sua pena à propaganda das principais figuras e dando destaque, dentre todas, a Fernando Pessoa (a quem divulgou incansavelmente desde um primeiro artigo no Fanfulla, em 1950).

Doravante, Pagu seria uma militante sobretudo do socialismo democrático e da cultura. No ideário desta socialista, continuariam sempre a figurar, ao lado da defesa dos direitos democráticos e da cultura – não concebia uma sem a outra –, também o materialismo, o racionalismo e o laicismo, bandeiras na luta antifascista.

Sua produção na Vanguarda Socialista confirma com a maior clareza o quanto manteve a fé socialista, ainda que tivesse rompido com o PCB. Neste panfleto de propaganda política, Pagu faz uma crítica ao fascismo, narra momentos de sua vida, testemunhando o que a levou à luta socialista, e expõe suas divergências com os métodos do Partido Comunista que a havia condenado e expulsado. Criticou a atuação do partido também na sátira A famosa revista, e de maneira explícita em sua plataforma eleitoral Verdade e liberdade.

Entretanto, a teoria marxista não foi a principal de suas preocupações nem mesmo nos tempos do fervor comunista. Seu romance Parque industrial (1933), que tem por fio condutor a luta de classes, é o que apresenta mais afinidades neste sentido. Leandro Konder, em Intelectuais brasileiros e marxismo (1991), argumenta que era comum entre os militantes socialistas que a fé na utopia obscurecesse a necessidade de embasamento teórico, visto como secundário ante as convicções igualitárias e o anseio imediato por justiça social. Era antes uma questão de ética. Isso, porém, não impediria que Pagu manifestasse opiniões tingidas de teoria em muitos de seus artigos, entremeadas por críticas à União Soviética e a Stálin.

Ao comentar a Constituinte de 1945, seu sarcasmo está impregnado já no título do artigo: “Konstituinte Kremliniana” (Vanguarda Socialista, 21/09/1945), enfatizando o quanto é autoritária a agremiação que redige a nova Constituição para um Brasil democrático. Ataca também aquilo que chama de “Literatura oportunista”, título de seu texto respondendo a um grupo de jovens que lhe perguntam como será a literatura do futuro, fazendo-a sair em defesa da autonomia da obra de arte. Esse é também o rumo que toma “Influência de uma revolução na literatura” (Vanguarda Socialista, 09/11/1945), em que examina o que aconteceu nas letras russas. Conclui que tentar comprimir a arte dentro de um dogma prejudicou o ato de criar, resultando numa literatura atrasada, indigna da filiação a Tolstói e Dostoiévski. E que ficou para trás, enquanto a literatura no resto do mundo produzia James Joyce, Virginia Woolf e André Malraux, autores em que Pagu se apoiava. Em “Nós, os bombardeados” (Diário de S. Paulo, 01/08/1948), satirizou o poder extraordinário que a bomba atômica lançada pelo governo dos Estados Unidos sobre Hiroshima e Nagasaki no fim da II Guerra lhes conferiu, solidarizando-se com as vítimas.

Já na segunda metade do século, é seu apego ao teatro que daria a tônica, eclodindo entre 1952 e 1953 – quando frequenta a Escola de Arte Dramática de São Paulo, na qual apresenta tradução e estudo de A cantora careca, de Ionesco. Batalhadora sem esmorecimento, assume a coordenação do Teatro Universitário Santista (1956) e a presidência da União dos Teatros Amadores da cidade (1961). A partir de 1957 mantém a coluna “Palcos e atores”, em A Tribuna, jornal local. Combativa, sua coluna seria uma trincheira na luta sem descanso pela dramaturgia experimental e pela liberdade de criação. Dirige a encenação da peça Fando e Lis, de Arrabal, que recebeu vários prêmios. Mais tarde, encenaria também A filha de Rapaccini, de Octavio Paz. Em 1958, ao lado do grande homem de teatro Paschoal Carlos Magno, à época o militante mais destacado dessa arte no país, criaria o Festival de Teatro Amador de Santos.

Confirmando sua indiscutível qualidade, o jornalismo que Pagu praticou entre 1931 e 1962 – recentemente editado em 4 volumes e reunido na antologia Palavras em rebeldia (2023) por Kenneth David Jackson – esteve presente nos mais influentes periódicos do país, de São Paulo, Rio de Janeiro e Santos. Entre eles Diário de Notícias, A Noite, O Diário de São Paulo, O Jornal, Fanfulla, Correio da Manhã, afora os já mencionados O Homem do Povo, Vanguarda Socialista, e A Tribuna, de Santos. Adepta de pseudônimos, além de Mara Lobo e King Shelter, que assinam respectivamente Parque industrial e Safra macabra, utilizou ainda os de Pat, Pt, Patsy, Peste, Ariel, Gim, Solange Sohl, Zazá, Paula, G. Léa, e Leonnie. Embora na parte final de sua vida tenha renegado o apelido Pagu e exigido que a chamassem de Patrícia, ficaria Pagu para sempre.

Por influência do atual movimento feminista, tem-se elevado Pagu ao posto de precursora e de ícone graças ao comportamento acima do convencional, muito à frente de seu tempo. Como consequência, têm surgido homenagens e fecundas análises. A repercussão de suas ideias e de sua prática continua em crescente expansão.

Pagu designaria, entre outros, um centro de pesquisa na Universidade Santa Cecília, de Santos, e outro na Universidade Estadual de Campinas, que edita a revista Cadernos de Pagu. E também diversos parques, jardins, escolas, centros culturais, teatros.

3 – Comentário sobre a obra

A obra de Pagu é notável por sua variedade e pela manifestação de uma inteligência fulgurante. Não há duas realizações iguais, nem mesmo semelhantes: um romance, um volume de contos policiais, um álbum de desenhos e uma história em quadrinhos, uma autobiografia parcial, poemas, jornalismo. Por outro lado, a publicação se fez mais ou menos ao léu das descobertas. Assim, assistimos à constituição e consolidação de uma obra heterogênea, mas nem por isso menos instigante. A recepção tem sido entusiástica, o que se infere do fato de alguns desses itens alcançarem sucessivas edições. Deve-se ainda levar em conta a crescente extrapolação dos próprios limites da obra e a exaltação da biografia, como se verifica nas derivações que surgem na música popular, na escola de samba, no cinema, na televisão e no teatro.

De 1929 é sua produção de estreia, Croquis de Pagu e outros momentos felizes que foram devorados reunidos (São Paulo: Cortez, 2004), um álbum de desenhos – oferecido pela autora a Tarsila do Amaral – que ficaria inédito até bem mais tarde. Foi publicado 75 anos depois, graças aos cuidados de uma grande pesquisadora e especialista da área, Lúcia Teixeira Furlani, com assessoria de Rudá de Andrade, filho da autora.

Outro conjunto coerente de seus escritos contempla as matérias que escreveu para o jornal tabloide O Homem do Povo (São Paulo, 1931). Após seu ingresso no Partido Comunista em 1930, este órgão de agitação e propaganda, criado por Oswald e por ela, seria sua contribuição ao preparo da revolução. Não resistiria mais do que 8 edições, tiradas durante o ano de 1931, sob o ataque de estudantes da Faculdade de Direito, próxima de sua sede, com tentativas de empastelamento e linchamento, combinadas com a perseguição da polícia. Pagu assinava uma história em quadrinhos (tendo por protagonista uma garota por nome Kabeluda…) e uma coluna crítica intitulada “A mulher do povo”, cujos artigos satirizavam as instituições e pensamento burgueses, em especial as ideias limitadas das “feministas de elite”. Estas, com visão estreita “negam o voto aos operários e trabalhadores sem instrução”, esquecendo-se de que “os problemas todos da vida econômica e social ainda estão para serem resolvidos”. No artigo intitulado “Maltus Alem” (27/03/1931), Pagu refuta a perspectiva retrógrada de certas feministas que defendiam mudanças sociais através do controle da natalidade. Afirma que “Marx já passou um sabão no celibatário Maltus, que desviava o sentido da revolução para um detalhe que a Rússia, por exemplo, já resolveu”; e que “o materialismo, solucionando problemas maiores, faz com que esse problema desapareça por si”. A edição fac-similar – Oswald de Andrade e Patrícia Galvão, O Homem do Povo (São Paulo: Imprensa Oficial, 1985) –, preparada com originais da Coleção Astrojildo Pereira, é de responsabilidade de Augusto de Campos, especialista em Pagu.

Em seguida, vem sua obra mais completa e mais bem realizada, que é Parque industrial (São Paulo: edição particular, 1933). Clássico do “romance proletário”, assinado pelo pseudônimo Mara Lobo, recebe em 2018 reedição impecável pela Linha a Linha, que honra a autora e a obra. Abre-o um prefácio de Augusto de Campos. Até essa redescoberta, tinha-se vaga noção de uma Pagu associada tanto aos fastos modernistas quanto à saga da esquerda. A diagramação manteve a distribuição em blocos, acentuando a concepção da narrativa fragmentada, em instantâneos ou flagrantes que se dispõem por curtos e incisivos capítulos. A prosa, entre expressionista e cubista, certamente é de vanguarda. Visa à síntese, apoiando-se sobre elipses e cortes súbitos, acentuando a velocidade do discurso que não perde tempo em explicações ou transições. Um pouco tendendo ao que então se chamava “estilo telegráfico”. A narrativa – que se passa no Brás, à época reduto operário de imigrantes italianos em São Paulo –, ao encaminhar-se num crescendo para a eclosão de uma greve, traz uma evidência logo de saída: trata-se de um romance de mulheres. São moças de vários tipos e instâncias da vida social, embora unidas pela classe, pois pertencem todas ao proletariado. Há poucas exceções, como aquela que subiu na vida casando-se com um homem de posses; ou outra que chegou aos abismos da prostituição mais desamparada, por não ter saúde para enfrentar a extenuante jornada de trabalho. No mais, são operárias mais politizadas ou mais alienadas, mais decididas a enfrentar as agruras da vida ou mais desesperadas. O dia-a-dia das jovens trabalhadoras é mostrado em suas facetas de tarefas, vida social, amores, militância. A imersão de Pagu em sua própria proletarização e trabalho na fábrica é húmus para a elaboração ficcional. Seu ativismo é ponto de partida, e mais anos de cárcere ainda viriam. Mostra também o assédio que as operárias sofrem dos rapazes de automóvel, para quem são mercadoria de carne, aliás descartável. Nem noivas nem prostitutas, não são elegíveis para casamento nem exigem pagamento – portanto são altamente convenientes, até por saírem barato. Aliás, nesse mesmo ano de 1933 Noel Rosa compôs o samba “Três apitos”, em que – coisa rara tanto na literatura quanto na música popular – fala das operárias de fábrica e desse assédio, só que mediante idealização benigna e sentimental, nada predadora, do dono do automóvel.

Depois vêm os trabalhos sem maiores consequências da série de nove contos policiais publicados na revista Detetive, entre 15 de junho e dezembro de 1944. A revista, dirigida por Nelson Rodrigues, era uma das muitas publicações do gênero, em papel barato e alheia a cuidados editoriais (ditas pulp fiction), que então surgiram em abundância. Assinados sob o pseudônimo deliberadamente norte-americanizado de “King Shelter”, a contribuição de Pagu foi mais tarde descoberta e editada por seu filho Geraldo Galvão Ferraz, conforme narra no prefácio à primeira edição da coletânea Safra macabra (Rio de Janeiro: José Olympio, 1998).

Escreveria a quatro mãos com Geraldo Ferraz o romance A famosa revista (Rio de Janeiro: Americ-Edit, 1945), sátira em forma de alegoria, contendo suas críticas ao Partido Comunista, com o qual rompera em 1940. As principais acusações são: burocratismo, autoritarismo, policiamento, intrusão na vida pessoal e moralismo.

A plaquete Verdade e liberdade é antes uma plataforma eleitoral, mas muito interessante, escrita quando de sua candidatura a deputada estadual pelo Partido Socialista, em 1950. A candidatura foi apoiada por Mário Pedrosa e Pagu se sente na obrigação de dizer ao eleitor ao que veio, ao pedir seu voto. Ali, ao tratar de expor suas convicções políticas, repete algumas das críticas que fizera ao PCB em A famosa revista. Como o eleitorado se apresenta dividido, ou seja, a esquerda está em disputa, Pagu aproveita para falar em nome da igualdade e da fraternidade, afirmando seus ideais socialistas para além das investidas contra o partido.

 As ideias e a prática política de Pagu ganhariam sobrevida a partir de um hiato de ostracismo, angariando uma admiração crescente. Devemos ao conhecido poeta concreto Augusto de Campos a redescoberta de Pagu: é de 1982 Pagu vida-obra (São Paulo: Brasiliense, 1982), livro que traz achados, estudos e uma antologia. Em 2014, a obra foi reeditada (São Paulo: Companhia das Letras), em edição na qual o poeta nos brinda com o que se pode chamar de definitiva. Revista e ampliada, tem 472 páginas, trazendo farta iconografia e novos textos; inclui agora uma entrevista do organizador e texto seu sobre O Homem do Povo, além de um estudo introdutório intitulado “Re-Pagu”. A antologia contempla os livros e as colunas periodísticas, constituindo-se numa amostra rica e fidedigna.

Para a biografia de Pagu há ainda a contribuição de uma catadora-recicladora, Selma Morgana Sarti, que encontrou no lixo, em uma rua do bairro paulistano do Butantã, diversos papéis, e percebeu sua importância. Estas são as circunstâncias mirabolantes que cercaram a recuperação e doação de um caderno autógrafo ao Arquivo Edgar Leuenroth da Universidade Estadual de Campinas. O caderno traz memórias parciais em forma de carta íntima a seu marido Geraldo Ferraz, escritas em 1940, que só seriam publicadas muitos anos após a morte de ambos: Paixão Pagu: a autobiografia precoce de Patrícia Galvão (São Paulo: Agir, 2005). O Jornal da Unicamp (n. 257, 26/06/2004), que dá conta do achado e doação, traz a lista de outros materiais encontrados, inclusive medalhas e condecorações.

Por último, e sendo o mais tardiamente resgatado do esquecimento, pois só publicado em 2023, o jornalismo profissional abre uma janela a iluminar seu ativismo na fase ainda menos conhecida, e final, de sua vida. É notável pelo que Pagu escreveu em vários órgãos, cobrindo 30 anos de jornalismo (1931-1962), com ênfase na fase de A Tribuna. São 4 volumes publicados eletronicamente e uma antologia impressa, intitulada Palavras em rebeldia (São Paulo: EDUSP, 2023), trazendo cerca de 200 colunas que constituem boa amostragem do jornalismo militante de Pagu. A obra foi organizada por Kenneth David Jackson, professor da Yale University (Estados Unidos), especialista em Modernismo e estudioso de Pagu, de quem traduziu Parque industrial ao inglês. Assim se completa uma parte fundamental e ainda inédita da produção de Pagu. A leitura deste jornalismo produz um impacto no leitor, pela abrangência dos assuntos e pela qualidade da escrita modernista.

Também de 2023 são os livros: Os cadernos de Pagu: manuscritos inéditos de Patrícia Galvão (Santos: Nocelli/Unisanta), organizada por Lúcia Teixeira, biógrafa da autora que reúne textos inéditos escritos entre os anos 1920 e 1960; e Até onde chega a sonda: escritos passionais (São Paulo: Fósforo), organizado por Silvana Jeha, que traz manuscritos redigidos no angustiante contexto de tortura que Pagu sofreu na prisão.

Se uma ampliação da popularidade levou Pagu a enredos de escola-de-samba e à música popular (canção “Pagu”, de Rita Lee e Zélia Duncan, 2004), por outro lado levou-a ao cinema e à televisão. Entre os filmes, destacam-se Eh Pagu, Eh (1982), documentário em curta-metragem dirigido por Ivo Branco; e Eternamente Pagu (1988), ficção dirigida por Norma Bengell. Já surgiu também em minissérie sobre o Modernismo (Um só coração, de Maria Adelaide Amaral, 2004), e recentemente vem aparecendo muito mais, devido às comemorações do Centenário da Semana de 1922 – como no curta-metragem “Pagu musa-medusa”, episódio da minissérie República da Poesia (2022).

Sua dedicação ao teatro tem sido recompensada pela fartura de encenações que sua vida e obra provocou; entre as principais, destacam-se Pagu que (2004), e Pagu pra quê (2017). Sua autobiografia parcial Paixão Pagu inspirou a peça Diário de uma revolucionária (Companhia do Feijão, 2015); e o texto memorialístico Até onde chega a sonda: escritos passionais (São Paulo: Fósforo, 2023), escrito na prisão em 1939, seria transformado em espetáculo solo (2022).

Em 2009, Pagu ganharia exposição no Museu Lasar Segall, na qual apareceu ladeada por duas figuras decisivas de seu convívio, donde o título: Pagu, Oswald, Segall – trabalho que constou de 60 obras, entre pinturas, desenhos, documentos, fotografias e iconografia em geral, incluindo peças de Portinari, Di Cavalcanti, e do próprio epônimo da casa.

Alguns de seus escritos podem ser encontrados livremente na rede.

4 – Bibliografia de referência

ARMONY, Adriana. Pagu no metrô. São Paulo: Nós, 2022.

CAMPOS, Augusto de. Pagu vida-obra. São Paulo: Companhia das Letras, 2014

COSTA, Marcia, De Pagu a Patrícia: último ato. Santos: Dobra Editorial/Fundo de Cultura de Santos, 2013. 

FURLANI, Lucia Maria Teixeira; e Ferraz, Geraldo Galvão. Viva Pagu: fotobiografia de Patrícia Galvão. Santos: Unisanta/Imprensa Oficial, 2010.

GUEDES, Thelma, Pagu. Literatura e revolução. Um estudo sobre o romance Parque industrial. São Paulo: Ateliê/Nankin, 2003.

JACKSON, Kenneth David (org.). O jornalismo de Patrícia Galvão. São Paulo: Edusp, 2023.

KASSAB, Álvaro. “A incrível história da catadora de rua que resgatou Pagu do lixo”. Jornal da Unicamp, n. 257 (26/06/2004). Disp: https://unicamp.br.

KONDER, Leandro. Intelectuais brasileiros e marxismo. São Paulo: Oficina de Livros, 1991.

LIMA, Luiz Costa. Fios do tempo: cem anos da Semana de 22. Rio de Janeiro: Ateliê de Humanidades, 2022.

REZENDE, Maria Valéria. Patrícia Galvão: militante irredutível. São Paulo: Rosa dos Tempos, 2023.

VENTURINI, Mariana. “Comunistas do Brasil e a questão da mulher” (08/03/2021). Disp: https://vermelho.org.br.

Notas

* Walnice Nogueira Galvão é crítica literária e professora emérita de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo; graduada em Ciências Sociais (USP), é livre-docente e doutora em Letras (USP). Autora de, entre outras obras: Lendo e relendo (Ouro sobre Azul/Sesc, 2019); e A donzela-guerreira: um estudo de gênero (Senac, 1998). É integrante do Conselho Editorial do Dicionário marxismo na América.

* Com colaboração e edição de texto de Yuri Martins-Fontes, Joana Aparecida Coutinho e Ândrea Francine Batista, e ilustração de Marcelo Guimarães Lima, este artigo foi originalmente publicado no portal do Núcleo Práxis-USP, sendo um dos verbetes do Dicionário marxismo na América; permite-se sua reprodução, sem fins comerciais, desde que citada a fonte (nucleopraxisusp.org) e que seu conteúdo não seja alterado. Sugestões e críticas são bem-vindas: nucleopraxis.usp.br@gmail.com.

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