Por Nirton Venancio, cineasta, roteirista, poeta, professor de literatura e cinema
Se quiser fazer uma xilogravura, pegue um pedaço de madeira mole, passe uma lixa pra ficar bem lisinha. Depois faça um desenho a lápis, e com uma faquinha bem amoladinha recorte o desenho com muito, mas muito cuidado pra não se machucar. E aí vem o mais difícil, o mais perigoso: abaixar o relevo. Fazer os detalhes das roupas com bolinhas, com flores. Faça o rosto começando por duas bolinhas que são os olhos, depois um triângulo que é o nariz, e finalmente a boca, que é um coração.
Resumo que fiz da receita que mestre J. Borges escreveu em “Como se faz uma xilografura”, cordel de 8 sextilhas, por ocasião de sua exposição “A arte de J. Borges: do cordel à xilogravura”, no CCBB-Brasília, 2004.
Em palestras, oficinas, entrevistas, em conversas com ele no universo de seu cantinho de trabalho, o jeito de dizer tudo era tão encantador quanto a grandiosidade de sua arte. As poucas vezes que estive com ele – mas momentos intensos pela dimensão do ser humano e artista – só me lembrava de uma máxima de outro gênio da mesma constelação, Leonardo Da Vinci: “A simplicidade é o último grau da sofisticação”.
José Francisco Borges desde muito cedo tinha muita energia criativa para dar grandiosidade e sentido às coisas no J. Borges que assingelou para sempre. Fazia os desenhos para seus livros de cordéis porque, dizia, somente ele sabia traduzir o sentimento de seus versos ao talhar a madeira molinha. Humanizava os bichos em seus quadros como forma de manter todos seres vivos com a mesma importância. Trazia o multicolorido de festas populares, do maracatu, dos reisados, em harmonia com o preto e branco das xilogravuras.
J. Borges é um dos artistas que Ariano Suassuna integrou na história do Movimento Armorial, que propunha a união das raízes nordestinas com a cultura erudita. Uma vez os dois se encontraram num evento em Brasília: “Até aqui, Borges?”, brincou Ariano. “A culpa é sua! Você me endeusa, o povo acredita, aí chamam você e me chamam também”, disse ele no fôlego de um abraço e modéstia.
Ele dizia que teve vida de matuto, criado no sítio em Bezerros, seu chão natal pernambucano. Estudou só dez meses, mas rapidamente aprendeu a ler, a escrever e fazer quatro peças de contas. Afirmava na tranquilidade de seu banquinho no atelier que “foi a arte que me fez, me formou”. A arte que lhe mostrou a vastidão além das margens do rio Ipojuga.
Quando lembrava das dezenas de países que visitou, onde expôs e deu aulas, dizia, com jeito encabulado entre sertanejo e cidadão do mundo: “Não é que aquele menino do sítio aprendeu a ler e deu uma passada longa na vida?”
O mestre partiu hoje, 26 de julho, para outros sítios, aos 88 anos. Sua passada longa por aqui xilogravada em nossa memória e saudade.
Fotos: Fábio Sampaio (capa do catálogo), 2004, e acervo família J. Borges, 2022