Por Celso Sabadin, Planeta Tela –
Estava outro dia almoçando com um amigo e colega crítico de cinema de um grande veículo, quando o telefone dele tocou. Era seu editor, solicitando-lhe “para amanhã” uma crítica do filme “O Menino e o Mundo”, que acabara de ser indicado ao Oscar. Meu amigo, pacientemente, informou ao editor que esta crítica já havia sido feita há muito tempo, que nunca fora publicada, e que se ele procurasse nos arquivos do jornal certamente a encontraria. Profissional e tranquilamente, meu amigo também se dispôs a procurar em seu computador o inédito texto, e lhe enviar em seguida. E assim foi feito.
Resolvido rapidamente o problema, continuamos nosso almoço, falando de futebol (engana-se quem pensa que crítico de cinema só fala de cinema). Mas a questão permaneceu na minha cabeça. É triste e melancólica esta necessidade que muitos editores (eu diria a grande maioria) têm de um aval externo para que eles decidam o que é ou não notícia. Despreparada, a maioria dos editores só percebe a importância de fatos que estão bem debaixo de seus narizes se alguém ou alguma entidade – de preferência internacional – lhes apontar os caminhos, como um grande infalível oráculo.
É o caso de “O Menino e o Mundo”. Qualquer pessoa com o mínimo conhecimento de cinema em particular, ou artes em geral, ou simplesmente munido de bom senso, percebe, ao ver o filme, que se trata de um grande momento da produção audiovisual brasileira. Mas qual foi a cobertura que o filme teve, na época do seu lançamento, da imprensa nacional? Pouquíssima. Abissalmente desproporcional à qualidade e à importância do longa.
Meses depois, quando aquele grupo que representa apenas os interesses da indústria cinematográfica norte-americana chamado Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood (olha o nome!) resolve indicar “O Menino e o Mundo” ao Oscar, boa parte da imprensa brasileira é pega de injustificável surpresa, e sai em sua costumeira e inócua corrida produzindo matérias a torto e a direito como quem diz “agora sim, que os gringos avalizaram, vamos ver o que há de bom por aqui”. O comportamento é de uma patética mentalidade colonial, onde a qualificação da metrópole é sempre necessária.
E, pior: o público age da mesma forma. Igualmente tosca, a mentalidade da maior parte do público aqui da colônia aguarda o aval da metrópole Hollywood para acorrer às filas de cinema para assistir “o que é bom”.
Este pensamento de nada buscar, de nada procurar, de jamais verificar, não ousar e muito menos pensar com a própria cabeça, eternamente no aguardo de que uma entidade supostamente superior venha nos dizer o que fazer, o que pensar e – neste caso – que filme assistir, destrói a base de qualquer cultura.
Um grande veículo brasileiro procurar em seus arquivos um texto jamais publicado por falta de interesse, e que agora ganha importância porque uma entidade internacional (que jamais premiou Hitchcock ou Chaplin como melhores diretores, diga-se) deu seu aval, mostra que, nestes 500 anos, a nossa colônia só trocou de metrópole. E para pior.
Para encerrar, publico abaixo a crítica que fiz ao filme “O Menino e o Mundo”, na ocasião de seu lançamento, durante cobertura do Festival de Cuiabá:
Noite de encantamento aqui no 19o. Cinemato. Assim como tem feito em todos os lugares por onde passa, o desenho animado de longa metragem “O Menino e o Mundo” também arrebatou a plateia cuiabana com seus traços mágicos e sua história pungente.
Falado num idioma mágico e universal, o filme mostra a saga de um garotinho sem nome que vive com seu pai e sua mãe num pequeno paraíso rural. Seu dia-a-dia consiste em interagir com a natureza, brincar no rio e, claro, voar junto com as fofas nuvens do céu. Até o dia em que o pai se vê obrigado a buscar o sustento da família longe deste paraíso. De mala, chapéu, e uma torturante gravata vermelha lhe apertando o pescoço, o pai sai em busca de seu papel de grande provedor. Antes, porém, deixa para o menino sua herança cultural: singelas notas musicais tocadas numa flauta, que o menino se encarrega cuidadosamente de guardar numa latinha. Mãe e menino se veem, então, vítimas do êxodo rural, da migração, e o pequeno núcleo familiar se rompe. Mas a saudade vai se tornando insuportável demais para o garotinho que, certa noite, faz também sua própria mala e cai no mundo em busca do pai, tendo como bússola apenas as notas musicais que um dia saíram de sua flauta.
E isto é apenas o começo. A partir daí, Alê Abreu (o mesmo roteirista e diretor de “O Garoto Cósmico”) monta um duro e poético painel das relações homem/trabalho que têm destruído a sociedade moderna. A exploração do capitalismo, o caos urbano, a febre consumista, a opressão multinacional, nada escapa do olhar atento de Abreu. Nem a alienação popular via futebol, tão em moda neste ano de Copa, e que já estava presente neste roteiro escrito há vários anos.
Porém, mais até que as críticas onipresentes no filme, “O Menino e o Mundo” chama a atenção pela delicadeza de seus traços, pela profusão das cores, e pela singeleza de toda a sua narrativa. É um filme que se apoia fortemente em sua belíssima trilha sonora, ela própria um forte e determinante personagem da história.
Não se deixe enganar. “O Menino e o Mundo” não é apenas mais um filme sobre um filho em busca de seu pai, como os excelentes “Central do Brasil” e “El Viaje” (argentino de Fernando Solanas), apenas para citar dois exemplos. Ele é muito mais que isso: é uma denúncia sob a forma de poesia, é a história de uma descoberta infantil forjada pelos traços mágicos de uma animação magnífica, e embalado por uma trilha onírica que parece ter vinda diretamente do mesmo mundo de duas luas onde habita o protagonista.
Após a sessão do filme no Festival de Cuiabá, deveria ter sido exibido o documentário “Fla x Flu”, o que não foi possível em função de problemas técnicos. Mas durante a espera da sessão que não aconteceu, o que mais se ouvia na plateia era gente assobiando o tema musical de “O Menino e o Mundo”. Pelo visto (e pelo ouvido), não foi apenas para o filho que aquele dedicado pai deixou uma herança cultural afetiva sob a forma de música e poesia.