O Menino que Amava Cinema

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Lourenço Paulillo, 81 anos, com uma memória maravilhosa, me levou a pensar numa sessão para este blog chamada “Coisa de Cinema”. Sim, este blog que tem falado tanto em filme que poderia também se chamar de Bem Filmado ou Bem Projetado. Na mesma trilha do Cícero César, nosso cronista de mil assuntos que, de vez em quando, nos leva à caleidoscópica sala escura, Lourenço Paulillo nos transporta ao cinema desde a década de 40, contando suas peripécias de olho na telona. (Washington Araújo)

Vamos ao texto Coisa de Cinema do cinéfilo Lourenço Paulillo.




Tudo começou quando fomos morar na rua Domingos Leme, eu aos seis anos, e descobrimos o cine Radar (depois Del Rey) no começo da av. Sto. Amaro. Era só descer a Bastos Pereira ou a Prof..Filadelfo Azevedo. O Radar exibia filmes da 20th Century Fox, fazendo parte do circuito dos cines Marabá, da av. Ipiranga, e República, na praça homônima. Aos domingos íamos às matinês, que incluiam um seriado (para nos manter cativos, por exenmplo, do Flash Gordon), e dois filmes. Era a tarde inteira no escurinho do cinema, afinal ainda não havia o Parque Ibirapuera.

Na larga escadaria que levava à sala de exibição, havia cartazes dos futuros lançamentos nas duas laterais. Toda semana um novo filme era lançado e portanto um desses cartazes era trocado por outra novidade. Durante a semana eu e o amigo Dante íamos até lá pra ver a tal novidade. Foi assim que vi o cartaz do filme Meu Coração Canta (With a Song in My Heart) e descobri a atriz Susan Hayward, de longos cabelos ruivos, por quem me apaixonei e segui por toda sua carreira.

Havia outros cinemas nas redondezas, o Star (depois Lumière) na rua Joaquim Floriano, o Excelsior, sala estreita e longa, na própria Sto. Amaro, e o Joá, em Moema. Neste, eu e o Dante encontrávamos pedacinhos cortados de filmes no terreno baldio ao lado e tentávamos adivinhar de que filmes seriam.

Nesta fase, eu passava alguns dias de férias na casa de três tias irmãs do meu pai – Maria, Hermínia e Elvira – lá na av. Brigadeiro Luís Antonio com a Maria Paula, e elas me levavam, bem como a meus primos, a ver filmes de tema religioso, nos cines Alhambra e Paratodos, o que para nossa pouca idade era bem tedioso.

Havia duas revistas de cinema nessa época, Cinelândia, com noticiário, e Filmelândia, com resumos de filmes ainda inéditos no Brasil, pois os lançamentos não eram quase simultâneos, como ocorre hoje. As capas traziam belas fotos das estrelas, entre elas a Elizabeth Taylor e seus olhos violeta, Ava Gardner, Marilyn Monroe, Sophia Loren.

A Cinelândia passou a publicar o endereço dos estúdios e eu resolvi escrever uma cartinha para a Susan Hayward para pedir um autógrafo. Algum tempo depois, ao chegar da escola, minha mãe disse: chegou uma carta pra você. Corri para abrir o envelope pardo e me deparei com uma bela foto em branco e preto da Susan, autografada.

Fiquei muito feliz e passei a enviar outras cartinhas a muitas outras estrelas e astros do cinema, adaptando o texto para citar os filmes que havia visto com cada um deles. Assim, comecei a receber muitas fotos, que fui colecionando e até hoje guardo num álbum.

Tínhamos um vizinho, o sr. Domingos, que assinava o Estadão, e como as famílias eram muito amigas, eles me emprestavam todo dia o jornal, para que eu curtisse a parte de cinema, vendo os anúncios dos filmes nas últimas páginas, e com o tempo comecei a ler as críticas, e fui me interessando cada vez mais pelo cinema.

No ginasial, mais crescido, como as aulas eram pela manhã, eu procurava ir à tarde no dia da inauguração das novas salas do Centro. Foi assim com o Olido, que tinha um carpete de afundar os pés e orquestra ao vivo à noite, com o filme Tarde demais para esquecer, com a Deborah Kerr e o Cary Grant; o Rivoli, ex-Ritz São João, com A Volta ao Mundo em 80 dias; o Paissandu, com Guerra e Paz, com a Audrey Hepburn e o Henry Fonda.

Já adolescente, comecei a frequentar as salas da rua Augusta – o Majestic (hoje Espaço Itaú de Cinema), o Picolino, o Ritz Consolação (hoje Belas Artes), o Regência (hoje Teatro Augusta) e o Paulistano, do lado dos Jardins (hoje Teatro Procópio Ferreira). Mais tarde o Astor, no Conjunto Nacional ( hoje Livraria Cultura).

Nesses anos fui conhecendo mais opções do cinema europeu, os clássicos italianos e franceses, a nouvelle vague, o neo-realismo: De Sicca, Fellini, Visconti, Antonioni, Rossellini, Godard, Truffaud, Chabrol, Resnais, o sueco Bergman. Quanta beleza na Gina Lollobrigida de Pão, Amor e Fantasia: na Sophia Loren de A Mulher do rio; Claudia Cardinale em O Leopardo; Anita Eckberg em A Doce Vida; Ingrid Bergman em Casablanca. E ainda Jeanne Moreau, Brigitte Bardot….

Que emoção as primeiras “plumas” de neve ( le manine) da pequena cidade de Rimini em Amarcord, do genial Fellini. E a Giulietta Masina de La Strada e Noites de Cabíria.

Voltando aos tempos de criança, eu criei um cartaz do cine Radar, que ficava fixo na cozinha de casa, e pedi para meu pai instalar uma lâmpada que acendia à noite. Anotava num caderno todos os filmes vistos, mas este infelizmente desapareceu. E fazia um mapa de todos os lançamentos, com as salas no cabeçalho e as 52 semanas do ano nas linhas. Os nomes iam nos quadrinhos, com aspas nas semanas seguintes do mesmo filme. Imaginem quantas aspas nos filmes que ficavam meses em cartaz. Infelizmente esses mapas também sumiram, creio que por artes da minha mãe, que não aguentava tanta papelada.

Cada sala tinha certa especialidade. Por exemplo, os filmes do Mazzaropi e as chanchadas da Atlântida eram lançados no Art-Palácio, onde se formavam filas de virar o quarteirão. O Metro lançava os filmes com a marca do leão, o Coral os europeus, o Normandie apenas os franceses.

Eram tempos em que só se podia ver os filmes nas salas de cinema, por isso tanto público. A TV engatinhava, não havia video-cassetes, DVDs, muito menos o atual streaming.

Teria tanto mais a comentar, o assunto é sem fim! Grandes filmes brasileiros, desde a Vera Cruz, Vidas Secas, O Pagador de Promessas com sua Palma de Ouro em Cannes, Eles não usam black-tie, até Cidade de Deus do Fernando Meirelles e o lindo Central do Brasil, do Walter Salles, com a inesquecível cena final da Fernanda Montenegro embarcando de volta no ônibus.

Vou até pular várias coisas que rascunhei, meu álbum de figurinhas Astros da Tela, a beleza de Morte em Veneza, todo o Chaplin, os Spielberg, os Coppola, o James Dean de Vidas Amargas, a Katharine Hepburn e o Henry Fonda de Num Lago Dourado, a Meryl Streep, a Ruth de Souza, o Clint Eastwood, o Woody Allen, todo o elenco magistral de Rocco e seus Irmãos, um dos melhores filmes que ja vi, o Hitchcock, os musicais da Metro, a chegada do Cinemascope na tela gigante do República com O Manto Sagrado, os antigos 3D, entre eles O Monstro da Lagoa Negra.

Termino voltando a falar da Susan Hayward. Torcia pra ela ganhar o Oscar cada vez que concorria. Certa vez perdeu para a grande Anna Magnani de A Rosa Tatuada. Mas finalmente foi premiada em Quero Viver! ao interpretar uma condenada à cadeira elétrica, de nome Barbara Graham.

Quem sabe um dia eu conto outras curiosidades que deixei de lado.

THE END.

Foto: Filme Cinema Paradiso

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