O menino que carregava água na peneira
Manoel de Barros
Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos
A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso
O menino era ligado em despropósitos
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos
Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira
Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira
No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras
E começou a fazer peraltagens
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela
O menino fazia prodígios
Até fez uma pedra dar flor
A mãe reparava o menino com ternura
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!
-do livro “Exercícios de ser criança”, de Manoel de Barros, publicado em 1999.