O que os governos aprenderam com a crise financeira? Eu poderia escrever uma coluna falando sobre isso. Ou poderia explicar com uma única palavra: nada.
Na verdade, nada é muito generoso. As lições aprendidas são contra-lições, anticonhecimento, novas políticas que dificilmente poderiam ser melhor concebidas para assegurar a recorrência da crise, dessa vez com acréscimo de impulso e menos remédios. E a crise financeira é apenas uma das múltiplas crises – de arrecadação, gasto público, saúde pública e, acima de todas, ecológica – que as mesmas contra-lições fazem acelerar.
O professor de direito Joel Bakan, num artigo no Cornell International Law Journal, argumenta que dois movimentos alarmantes estão acontecendo simultaneamente. De um lado, os governos vêm revogando leis que restringem a ação de bancos e corporações, sob o argumento de que a globalização enfraquece os Estados, tornando impossível uma legislação efetiva. Como alternativa, eles dizem, nós devemos confiar na autorregulação daqueles que exercem o poder econômico.Volte um pouco atrás e você verá que todas essas crises têm origem na mesma causa. Atores com grande poder e alcance global são liberados do império das leis. Isso acontece devido à corrupção fundamental no núcleo da política. Em quase todas as nações, os interesses das elites econômicas tendem a pesar mais na balança dos governos do que os interesses do eleitorado. Bancos, corporações e proprietários de terras exercem um poder enigmático, operando silenciosamente entre os membros da classe política. A governança global está se tornando algo semelhante a uma reunião infinita do Clube de Bilderberg1.
Por outro lado, os mesmos governos concebem novas leis draconianas para fortalecer o poder da elite. Às corporações são dados os direitos de pessoas físicas. Seus direitos de propriedade são reforçados. Aqueles que protestam contra elas estão sujeitos ao controle e à vigilância policial. Ah, o poder do Estado continua muito bem a existir – quando é conveniente…
Muitos de vocês já terão ouvido falar sobre a Parceria Transpacífica (TPP) e da proposta da Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP). São, supostamente, acordos de comércio – mas pouco têm a ver com comércio e, sim, com poder. Ampliam o poder das corporações, enquanto reduzem o poder dos parlamentos e do Estado de Direito. Tais acordos não poderiam ser melhor concebidos para exacerbar e universalizar nossas múltiplas crises – financeira, social e ambiental. Mas algo ainda pior está por vir, o resultado de negociações conduzidas, mais uma vez, em segredo: um Acordo sobre o Comércio de Serviços (TiSA), cobrindo a América do Norte, a União Europeia, Japão, Austrália e muitas outras nações.
Apenas através do Wikileaks temos alguma ideia do que está sendo planejado. Este acordo poderia ser usado para forçar nações a aceitar novos produtos e serviços financeiros, a aprovar a privatização de serviços públicos e a reduzir os padrões de precaução e provisão. Esta parece ser a maior agressão à democracia arquitetada nas últimas duas décadas. O que significa muito.
O Estado, em sua autoflagelação, proclama que não tem mais poder. Ao mesmo tempo, aniquila sua própria capacidade de legislar – doméstica e internacionalmente. Como se a última crise financeira não tivesse ocorrido, e como se não estivesse ciente de sua causa, o ministro das Finanças britânico, George Osborne, em seu mais recente discurso na Prefeitura de Londres, disse à sua plateia de banqueiros que “a principal exigência na nossa renegociação é que a Europa interrompa a regulação onerosa e prejudicial”. O primeiro-ministro David Cameron vangloriou-se de comandar “o primeiro governo na história moderna que, ao fim de sua legislatura, possui menos regulações em prática do que havia no começo”.
Isso, num mundo de crescente complexidade e onde crescem os crimes corporativos, é pura imprudência. Mas não tenha medo, eles dizem: o poder econômico não precisa se sujeitar ao Estado de Direito. Ele consegue se regular por si próprio.
Alguns de nós há tempos suspeitamos que isso seja uma grande tolice. Mas, até agora, a suspeita era tudo que tínhamos. Esta semana foi publicada o primeiro estudo global sobre autorregulação. Tal estudo foi encomendado pela Britain’s Royal Society for the Protection of Birds2, mas se estende a todos os setores, desde agentes de pequenos empréstimos até criadores de cães. E ele mostra que em quase todos os casos – 82% dos 161 projetos avaliados, medidas voluntárias fracassaram.
Por exemplo, quando a União Europeia buscou reduzir o número de pedestres e ciclistas mortos por veículos, a instituição poderia ter simplesmente votado uma lei instruindo os fabricantes de automóveis a mudar o design dos para-choques e capôs, a um custo aproximado de€30 por carro. Ao invés disso, confiou-se num acordo voluntário com a indústria. O resultado foi um nível de proteção 75% menor do que uma lei teria induzido.
Quando o governo do País de Gales introduziu uma cobrança de 5 centavos para sacolas plásticas, o seu uso foi reduzido em 80% de um dia para outro. O governo inglês afirmou que a autorregulação por parte dos varejistas apresentaria o mesmo efeito. O resultado? Uma grande redução de… 6%. Depois de sete anos desperdiçados, o governo sucumbiu à lógica óbvia e introduziu a cobrança.
Projetos voluntários para coibir a publicidade de junk food para crianças na Espanha, para reduzir a emissão de gases causadores do efeito estufa no Canadá, para economia de água na California, para salvar albatrozes dos barcos de pesca na Nova Zelândia, para a proteção de pacientes de cirurgias plásticas no Reino Unido, para impedir o marketing agressivo de remédios psiquiátricos na Suécia: apenas fracassos. O que o Estado poderia ter feito com uma simples canetada, com baixo custo e de maneira eficiente é deixado de lado em prol de ações desastradas das indústrias que, mesmo quando sinceras, são minadas por aproveitadores e oportunistas.
Em diversos casos, as empresas imploraram por novas leis que elevassem os padrões na indústria. Por exemplo, aqueles que produzem embalagens plásticas para silagem para fazendeiros tentaram fazer com que o governo do Reino Unido elevasse a taxa de reciclagem. Empresas de jardinagem queriam regulamentações para eliminar gradualmente o uso de turfa. Os governos recusaram. Teria sido o resultado de ideologia cega ou escusos interesses próprios – ou ambos? Os maiores doadores de partidos políticos tendem a ser os piores empresários, usando seu dinheiro para manter as más práticas legais (vide o caso Enron).
Como os partidos que eles financiam se curvam aos seus desejos, todos são forçados a adotar seus baixos padrões. Suspeito que os governos, assim como qualquer um, sabem que a legislação é mais eficiente e eficaz que a autorregulação e que por isso mesmo não a empregue.
Imobilizar o eleitorado, liberar os poderosos: essa é a fórmula perfeita para uma crise multidimensional. E nós estamos colhendo seus frutos.
1N. T.: As reuniões do Clube de Bilderberg acontecem anualmente com o objetivo de fomentar os diálogos entre EUA e Europa. A conferência conta com a presença de líderes políticos, acadêmicos, empresários discutindo informalmente tendências globais. A lista dos participantes é divulgada, mas ninguém tem acesso ao conteúdo da conferência. Ver mais em: http://ow.ly/V5rzK.
2 N. T.: Sociedade Real Britânica de Proteção dos Pássaros