Um poema tanto mais belo é quanto mais parecido for com o cavalo. Por não ter nada de mais nem nada de menos é que o cavalo é o mais belo ser da Criação (Mário Quintana)
E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, dá voz a um galopante que conta a sua saga.
“Já passei de burro velho, já fui dado muitas vezes, já deveria ter aprendido a lição. No entanto, não deixei de lado este traço de minha personalidade, isto é, o de matutar ou de aparentar estar matutando em voz alta.
Cheguei ao mundo em cocheira sem pompa, no tempo em que animais como eu puxavam charretes em muitas localidades. Trabalhávamos feito burros de carga, fazíamos uns extras como bichos de presépio. Tração, distração. Tração, distração.
Sumimos todos ou quase todos, sumimos. De uma hora para outra, não ouvimos as batidas de nossos cascos no chão. As ruas de areia ficaram mais limpas sem o nosso estrume. A flor feia que nasceu na rua não foi por nossa responsabilidade.
De lá acho que fui parar em uma praça onde rodávamos em carrossel. Era a tal da praça dos Cavalinhos. Nós, os cavalos e os bodes. Cobriam-nos de flores em certas datas, eu acho. Faz tempo, não posso dar garantias. De cavalo que fala e que bebe cerveja não se exige a certeza dos pormenores.
Nunca pisei em hipódromo. Nunca apostaram em mim por lá; nem dei bom palpite para a fé no jogo do bicho. Nós os cavalinhos; eles, os cavalões.
De lá me levaram estrada acima, estrada abaixo para uma chácara mais outros. Muitos de nós chegavam velhos, cansados já. Apesar disso tudo, até o fim nos tirariam o couro. Nós, os que iam na frente dos carroceiros no bom trote de cada dia.
Fui parar por acaso em outro lugar, bonito até. Céu na terra de cavalos, éramos tratados com respeito incomum. Não havia pancada. Comida era pouca, mas regular. E, apesar das injeções, os homens eram bons, honestos. Os homens não eram uns sabichões. Eram uns bichanos.
Quando a tarde caía o local era abandonado. Era quando nos deixavam à solta na boca da noite, era quando nossos olhos brilhavam no escuro ao som de certos lampejos. Era quando íamos às carreiras. Uma coisa maior que a gente nos vinha. Eu refolegava, eu empinava.
Foi um pouco depois de sitiado ali no bem-bom que decidi fugir. Bateu em mim certa loucura de voltar ao início da vida, teimosia daquelas. No rompante, abandonei o novo dono na estância, a quem fiz ouvidos de mercador quando saí em disparada para frente. Um homem que caminhava em direção contrária ficou frouxo de rir da situação que imaginou testemunhar: um homem grunhia atrás de um cavalo velho que corria mais que ele.
Deixaram-me ir? Atrapalhei o tráfego? Eu queria ir por instinto até a Praça das barcas, a meio caminho de onde eu vim. Em terra natal, eu iria pegar carreto de novo se carreto houvesse. Pegar passageiro de novo, dar volta na ilha de novo, ser coberto de flores, bater ritmado os cascos no chão, cagar e andar, cagar e andar, ser comandado ao som de certas interjeições, sem nunca jamais ouvir som de chicote no lombo e finalmente ver no fim os olhos de satisfação do Mundinho, meu amigo do peito, meu dono, que jurou que nós nunca nos separaríamos e que, no entanto, o pacto não pode cumprir.
O meu dono é o que não fala. É o que tem este apelido: Mundinho. O miudinho, mudinho. A ele e somente a ele satisfações eu devo.
Nos reconheceremos como sempre fizemos desde a primeira vez, pelo olhar, pelo cheiro, pelo instinto. Faz uns três dias que estou aqui à espera da embarcação que me levará de volta. Quem sabe não tem quem me resgate, quem me tire de cima deste telhado onde eu também não sei como me enfiaram? Não sou invisível. Ou sou?”
Imagem da capa da postagem: Obra do pintor argentino José Acuña intitulada “A solidariedade é doce como Caramelo”, em homenagem ao cavalo resgatado do telhado de uma casa em Canoas (RS), em maio de 2024.
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.