O mundo à beira da grande crise alimentar

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Corporações associadas ao agronegócio dominaram a cadeia global da produção e comércio de comida. A teia está se esgarçando — exatamente como a das finanças, em 2008. O aumento da fome e inflação dos alimentos são o primeiro sintoma

Por George Monbiot, tradução de Antonio Martins, compartilhado de Outras Palavras




Nós últimos anos, os cientistas soaram, de forma frenética, um alarme que os governos recusaram-se a ouvir: o sistema alimentar global está começando a se parecer com o sistema financeiro às vésperas de 2008.

Se um colapso financeiro pode ser devastador para o bem-estar das sociedades, um colapso do sistema alimentar chega a ser inimaginável. Mas crescem as evidências de que algo vai muito mal. O atual aumento dos preços da comida é o sinal mais recente de instabilidade sistêmica.

Muitas pessoas presumem que a crise alimentar foi causada por uma combinação de pandemia com a invasão da Ucrânia. Embora sejam fatores importantes, eles apenas agravam problemas anteriores. Durante anos, pareceu que a fome estava em vias de extinção. O número de pessoas mal nutridas caiu de 811 milhões em 2005 para 607 milhões em 2014. Mas em 2015, a tendência começou a se inverter. A fome cresce desde então: chegou a 650 milhões em 2019 e voltou a 811 milhões em 2020. Este ano, é provável que os números sejam muito piores.

Agora, prepare-se para as notícias realmente ruins: tudo isso ocorreu num período de grande abundância. A produção global de alimentos avançou de modo estável durante mais de meio século, bem acima do crescimento populacional. No ano passado, a colheita global de trigo foi maior do que nunca. Espantosamente, o número de desnutridos começou a crescer exatamente quando os preços mundiais dos alimentos começaram a cair. Em 2014, quando havia menos pessoas famintas que em qualquer ano anterior, o índice global de preços da comida manteve-se em 115 pontos. Em 2015, ele caiu para 93 e permaneceu abaixo de 100 até 2021.

Ele só disparou nos últimos dois anos. A alta nos preços dos alimentos é hoje um grande motor da inflação em muitas partes do mundo. A comida está se tornando inacessível mesmo para muitas pessoas nos países ricos. O impacto em países mais pobres é muito pior.

O que está acontecendo? A alimentação global é, assim como as finanças globais, um sistema complexo, que se desenvolve de modo espontâneo a partir de bilhões de interações. Sistemas complexos têm propriedades contraintuitivas. São resilientes sob certas condições, pois suas propriedades de auto-organização os estabilizam. Mas à medida em que o estresse cresce, estas mesmas propriedades começam a transmitir choques em toda a rede. Além de um certo ponto, um pequeno distúrbio pode projetar todo o sistema além de um limite crítico, quando então ele entra em colapso, de modo súbito e incontível.

Já sabemos o suficiente sobre sistemas para prever se são resilientes ou frágeis. Os cientistas representam sistemas complexos como uma malha de nós e links. Os nós são como os de uma rede; os links são os fios que os conectam. No sistema alimentar, os nós incluem as corporações que comercializam grãos, sementes e agrotóxicos, os grandes exportadores e importadores e os portos pelos quais passa a comida. Os links são suas relações comerciais e institucionais.

Se os nós comportam-se de múltiplas maneiras, e os links entre eles são fracos, o sistema provavelmente será resiliente. Se certos nós tornam-se dominantes, passam a se comportar de maneira similar e estão fortemente conectados, o sistema provavelmente tornou-se frágil. Em 2008, à medida em que crise financeira se desenrolava, os grandes bancos desenvolveram estratégias e meios de gerenciamento de riscos similares, já que buscavam as mesmas fontes de lucro. Tornaram-se fortemente ligados uns aos outros, em desenhos que os órgãos reguladores quase não entendiam. Quando o banco Lehman Brothers faliu, houve o risco de tudo vir abaixo.

Algo provoca calafrios naqueles que estudam o sistema alimentar global. Nos últimos anos, assim como no sistema financeiros dos anos 2000, nós-chave do sistema alimentar expandiram-se, seus links tornaram-se mais fortes, as estratégias de negócio convergiram e se sincronizaram, e as características que poderiam impedir o colapso sistêmico (“redundância”, “modularidade”, “interruptores de circuitos” e “mecanismos de becape”) foram eliminados, expondo o sistema a choques capazes de provocar contágio global.

Segundo uma estimativa, quatro corporações controlam sozinhas 90% do comércio global de grãos. As mesmas corporações dominam as sementes, os químicos, o processamento, a embalagem, a distribuição e o varejo. Ao longo de 18 anos, o número de conexões comerciais entre exportadores de milho e arroz dobraram. Os países estão agora se polarizando entre super importadores e super exportadores. Muito deste comércio passa por pontos vulneráveis, como os estreitos turcos de Bósforo e Dardanelos (agora obstruídos pela invasão russa da Ucrânia), os canais de Suez e do Panamá e os estreitos de Hormuz, Bab-el-Mande e Málaca.

Uma das mudanças culturais mais rápidas na história humana é a convergência para uma dieta-padrão global. Embora nossa alimentação tenha se tornado mais diversa em cada local, globalmente ela tornou-se menos diversa. Apenas quatro cultivos – trigo, arroz, milho e soja – respondem por quase 60% das calorias plantadas pelos agricultores. Sua produção está agora altamente concentrada nas mãos de um punhado de nações, entre as quais a Rússia e a Ucrânia. A dieta-padrão global é produzida pela fazenda-padrão global, abastecida pelas mesmas corporações, com os mesmos pacotes de sementes, agrotóxicos e maquinário e vulnerável aos mesmos choques ambientais.

A indústria alimentar está se tornando parelha ao sistema financeiro, ampliando o que os cientistas chamam de “densidade de rede” do sistema, tornando-o mais sucetível a falências em cascata. Em todo o mundo, as barreiras ao comércio foram derrubadas; as rodovias e portos, ampliados, o que homogenizou a rede global. É um engano pensar que este sistema amplia a segurança alimentar. Ele permitiu que as corporações encobrissem os custos de armazenagem, ao passarem da estocagem aos fluxos contínuos. Em geral, este estratégia just in time funciona. Mas se as entregas são interrompidas, ou há um rápido aumento da demanda, as prateleiras podem esvaziar subitamente.

Um texto na revista Nature Sustainability relata que no sistema alimentar “a frequência dos choques cresceu ao longo do tempo, em terra e no mar e em escala global”. Ao fazer a pesquisa para meu livro Regenesis, percebi que é esta série crescente de choques de contágio, exacerbada pela especulação financeira, que está conduzindo ao aumento da fome global.

Agora o sistema alimentar global precisa sobreviver não apenas a suas fragilidades internas, mas também a rupturas ambientais e políticas que podem interagir ente si. Para dar um exemplo atual, em meados de abril o governo indiano sugeriu que poderia suprir a queda das exportações globais de alimentos causada pela invasão da Ucrânia. Apenas um mês depois, ele baniu as exportações de trigo, depois que as colheitas secaram devido a uma onde de calor devastadora.

Precisamos com urgência diversificar a produção global de alimentos, tanto em termos geográficos quanto de cultivos e técnicas agrícolas. Precisamos quebrar as garras das megacorporações e dos especuladores financeiros. Precisamos criar sistemas de becape, produzindo alimentos por meios muito distintos uns dos outros. Precisamos introduzir capacidade de reserva num sistema ameaçado por suas próprias eficiências.

Se tantos entraram nas estatísticas da fome num tempo de bonança sem precedentes, as consequências dos grandes fracassos de colheitas que as crises ambientais podem causar desafiam a imaginação. O sistema precisa mudar.

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