O não-discurso do Professor Alfredo

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E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, volta ao personagem Professor Alfredo. E volta para dizer do adeus do mestre. Com a palavra, Professor Alfredo; desculpe, com a escrita, Professor César.

“Para espanto geral, o Professor Alfredo não proferiu nenhuma palavra do discurso de despedida que a direção lhe pedira para preparar. Dava para sentir a aflição dele, justamente ele, que era um dos nossos. Depois da segunda tentativa, trouxeram-lhe um copo d´água com açúcar, o que infelizmente não surtiu o efeito desejado. Ele até se acalmou, mas nada de discurso. Então, Alfredo pediu desculpas a todos os presentes e se deu por vencido, dizendo que não dava, que não ia conseguir, para logo em seguida abandonar a sala 14 onde ocorria a reunião.





Fez-se um silêncio esquisito, abafado, incômodo, enquanto todos se entreolhavam como se perguntassem o que ocorrera com Alfredo. Até que, silêncio quebrado, se decidiu passar para a pauta seguinte.


Eu, de minha parte, queria saber o que houvera com ele. Costumávamos conversar bastante, pode-se dizer que eu era um dos seus mais chegados, praticamente um amigo. Talvez por isso mesmo nunca me ocorrera uma cena como a que presenciei justamente com ele, que sempre soube o que falar da escola.


E tem mais: Alfredo sempre me pareceu o professor da escola que mais reunia as qualidades de um bom mestre: ele era pontual, justo, experiente, com visão de mundo, conhecedor da sua matéria, organizado, com boa dicção e caligrafia, bem-humorado. Vê-lo gaguejar até se sufocar em público não foi de fato uma das minhas experiências mais felizes.


O que, meu Deus, Alfredo não disse? Ficamos sem saber de fato, à mercê das cogitações. Pois, logo depois do ocorrido, lhe foi concedida a licença prêmio e depois lhe chegou o aceite de aposentadoria. Estava ele, para todos os efeitos, livre como um passarinho.


Era ou não era coisa de se espantar a liberdade? Agora, nós, os que dariam duro durante anos e anos a fio até nos aposentarmos, ficaríamos orfãos das palavras gentis do Alfredo, de seus comentários tão pertinentes a respeito deste ou daquele aluno, a respeito desta ou daquela conjuntura política, a respeito deste ou daquele futuro da escola.


Foi difícil segurar a barra e seguir adiante sem ele, mas não havia outra opção para mim. E, como a escola da vida real não se parece tanto assim com a do cinema, eu tenho resolvido e não resolvido diversas pendengas escolares sem o auxílio do ombro amigo do Alfredo, que não me apareceu mais na escola nem para nos fazer uma visita.


Depois de um tempo transcorrido, até mesmo eu me esquecia por longos intervalos do meu amigo do peito. Eu já não via seu vulto pelos corredores nem imaginava o que ele diria se tivesse ouvido ou vivenciado o atual cotidiano escolar. Muitos alunos sequer ouviram falar do nome dele, “Alfredo, quem?”, era o que eles indagavam, pouco curiosos.

Talvez por isso eles, alunos novos, pudessem escolher de livre e boa vontade novos professores favoritos, pudessem lhes escrever bilhetes em papel verde claro mensagens bonitas – cheias de garatujas, ainda deficientes na ortografia, mas sinceras. Isto porque, até onde eu vejo, ainda hoje nenhum de nós é páreo para ele. Ainda assim, é preciso continuar.


Não exerço a suave liderança de Alfredo, sou feito de outra matéria. Para acabar com minhas manguinhas de fora de reivindicações bastam-me uns dois ou três piparotes. Pronto, já estou no meu lugar silencioso, onde é que eu assino, o que precisa ser feito que eu ainda não fiz? Amanhã revolto-me silenciosamente. Até quando? Onde está o apagador?


Mais tarde tomo coragem e ligo para ele, o velho e bom Alfredo, para lhe dar os parabéns pelo Dia do Professor, que é o dia em que se celebra ainda que modestamente a importância duradoura de um mestre nas nossas vidas.

Devo-lhe dizer amenidades, coisas que não importam muito, falar de futebol, não falar mal de ninguém nem da situação sufocante da educação, a não ser que ele proponha o assunto. E imaginarei que o quer que ele me diga será parte do discurso que ele, certa feita, preparou com esmero e que por motivo desconhecido de todos nós não proferiu. Fala, Alfredo! Sou todo ouvidos.”

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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