O natal do Messias ou Habermas tinto e seco

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Por Ricardo Alfaya , compartilhado de seu Site

Eu tinha planejado, para este final de ano, escrever uma crônica evocando episódios de um antigo Natal de família, um Natal em que fisicamente não estive presente, pois nem era nascido.Porém, apesar de não o ter vivido pessoalmente, foi o que mais marcou a minha vida,  tantas foram as vezes em que ouvi meu pai contá-lo, com ar saudoso: o Natal do Messias!

A memória, essa fugidia senhora traiçoeira, não me permite mais lembrar de todos os pormenores que meu pai narrava, saboreando.  Mas havia um episódio marcante, que se dava numa espécie de momento solene. Ocorreu quando um tio, de descendência alemã, casado com uma das irmãs de minha mãe, de repente se levanta perante uma comprida mesa, repleta de familiares de todas as idades, e improvisa um insólito discurso de louvor e agradecimento ao Messias.




Só que o “Messias” não era, absolutamente, o pequeno Jesus, mas sim o nome de um vinho lusitano do Porto, que existe até hoje, tendo surgido em 1926.  Graças a esse santo vinho, garantia comovido meu tio alemão, a família toda se achava ali reunida e feliz.  Estamos falando de fatos ocorridos nos idos e diluídos anos 1950. A família era então imensa e, em todo Natal, reunia-se no quintal de um casarão, na Zona Norte do Rio de Janeiro.  Fotos daquela época mostram uma longa mesa, resultante da junção de várias menores, que buscava imitar a da Santa Ceia.

Esses e outros detalhes vinculados eu até já havia rascunhado para deles falar, imprimindo assim um certo tom comemorativo a este período, apesar dos acontecimentos politicamente estranhos que temos vivenciado no País, ao longo do ano.

No entanto, a verdade é que não há nada a ser comemorado. Pelo menos, não com fogos e zoeira, como se tudo estivesse correndo “maravilhosamente bem”.  Afinal, comemorar ruidosamente, publicamente, é dizer “sim” ao absurdo que estamos testemunhando. O ano de 2019, no Brasil, começou, na verdade, em 28 de outubro de 2018, o triste dia em que o atual torturador da Nação, que, por ironia, também se chama “Messias”, foi eleito.  Quando 2019 terminará?  Certamente, não em 31 de dezembro.  O ano que está aí, 2019, continuará indefinidamente, até que alguém ou o povo resolva fazer alguma coisa.

Mas está difícil.  Persistem os efeitos da lavagem cerebral promovida pela grande mídia, somada ao trabalho dos bispos evangélicos.  A isso se acrescentem algumas duras pitadas de uma Justiça vendida e diversas colheres de amargor, oriundas da persistente distribuição de “fake news” por parte dos bolsonaristas e seus apoiadores.

Não há dúvida, quanto ao último tópico, que o bolsonarismo encontrou, nas “fake news”, o “mapa da mina”.  O que se torna a cada dia mais evidente é que o projeto bolsonarista pretende mudar o discurso histórico vigente por uma impostura que seja conveniente a seus próprios interesses e crenças. Dane-se a verdade, danem-se a ciência e o Iluminismo.

Assim, de várias vozes ligadas à esfera Federal, surgem declarações e ofensas absurdas, que são reiteradamente repetidas, a exemplo das táticas usadas pela propaganda nazista.  Desse modo, para o inexpressivo Olavo de Carvalho, guru do mandatário do País, a Terra é “plana”.  Uma parlamentar do retrógrado PSL, partido da direita a que pertencia o “eleito”, tem a coragem de caluniar a filha de Dilma Rousseff, inventando um impossível vínculo entre a moça e as lojas Havan, quando se sabe que o dono dessa cadeia de lojas ostensiva e publicamente apoiou o Capitão, havendo rumores de que o empresário teria coagido seus funcionários a também apoiarem o ex-militar do PSL à Presidência.  Por sua vez, do alto de seu trono em Brasília, o Reizinho abobalhado não para de disparar torpedos linguísticos; num breve período de tempo, conseguiu, desnecessariamente, ofender  o ex-presidente Lula, a ativista ambiental Greta Thunberg e a memória do grande pedagogo e pensador Paulo Freire, um Mestre internacionalmente reconhecido. As ofensas gratuitas, sem fundamento e sem cabimento, constituem uma forma mais agressiva de “fake news”.  Isso, fora os tiros que me escaparam, pois não tenho suficientes coletes de proteção para suportar a leitura de todos os zotismos e exotismos desse ex-capitão aposentado.

Tenho procurado utilizar a leitura da Filosofia como meu refúgio, minha forma de resistência a estes tempos sombrios.  Faço-o, inclusive, porque sei que nada chateia mais a soberba do atual soberano do que saber que a gente do povo está a ler e a pensar. Isso, sobretudo, ele não quer; justamente por isso, teimo em fazer.

Assim, ando a ler sobre Habermas.  Depois de Rousseau, talvez o filósofo que mais tenha acreditado e apostado na democracia moderna como melhor sistema político.  Estou ainda no início.  Vamos ver se Habermas me convence.  A regressão que vejo acontecer em meu País, que se tornou alvo da pilhéria internacional, dói no coração e me torna muito mais desconfiado em relação à real viabilidade do sistema democrático.  Dói, como dói ver o que está acontecendo na Amazônia.  Dói, como dói ver o Brasil novamente ostentar alarmantes índices de pobreza.  E tudo isso foi fruto de uma eleição… democrática?

Rousseau, no “Contrato Social”, já falava na importância da ampla circulação da informação legítima como base indispensável para a democracia.  Habermas, como se sabe, estuda a fundo a questão do impacto das mídias sociais sobre a opinião pública.  No entanto, ao contrário dos pensadores da Escola de Frankfurt que o antecederam, Habermas não se deixou tomar pelo pessimismo.  Apesar de tudo, o autor de “História e Crítica da Opinião Pública” acredita na democracia.

Respondendo à pergunta feita há pouco.  Claro que eleições calcadas na difusão de mentiras de toda sorte, como foram as de Trump e Bolsonaro, nada têm de democráticas, seja na visão de Rousseau, seja na de Habermas.  Seriam, portanto, dignas de sofrerem impedimento pelas Justiças Eleitorais de seus países, antes mesmo que os “eleitos” tomassem posse dos seus respectivos cargos.  Mas se isso não aconteceu nem nos EUA, muito menos ocorreria aqui. Salvo, claro, se, ao menos no caso brasileiro, o povo acordasse de seu torpor, de sua pasmaceira, de sua hipnose coletiva. Mas como conseguir isso?  Como voltar a ter esperança de que um legítimo sistema democrático se imponha perante o que se convencionou chamar de “ditadura financeira”? Continuarei a procurar em Habermas, quem sabe.Habermas é alemão, como foi meu tio.  Virá a ser Habermas meu novo Messias tinto a conferir-me alguma alegria e esperança, ainda que apenas para logo depois evaporar-se?

Ricardo Alfaya

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