O Naufrágio Final da Folha

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Por Ulisses Capozzoli, jornalista

A sensação é que a “Folha” se comporta, enquanto jornal, como um boxeador nocauteado, tão chapado de desentendimento que ainda não desmoronou. Não consegue atinar que, exatamente o que deve fazer é desmoronar, “beijar o chão” como se diz no mundo do ringue. O round terminou.




Mas a “Folha” vai pra lona, pro fundo do poço e para não levantar mais com o documentário que o ICL apresenta, neste domingo (27), mostrando a relação promíscua dela com a ditadura militar. Agentes da repressão, no auge da brutalidade, tortura/assassinatos, tinham fluxo livre por lá, incluindo uso de viaturas, como os carrinhos amarelos de reportagem/picapes da distribuição.

Os velhos fotógrafos da “Folha”, Gil Passarelli entre outros, com quem convivi, contavam casos pavorosos que envolveriam, entre outros cenários, a Serra do Mar, além de assinaturas vitalícias que teriam sido revertidas sem que os assinantes fossem reparados em seus direitos cessados.

O Grupo Folhas tinha até certa especialização, em termos de apoio irrestrito à ditadura militar. A extinta “Folha da Tarde”, por exemplo, foi território da aeronáutica. E havia, no grupo, uma excrescência chamada “Notícias Populares”, que os mais cínicos olhavam de uma perspectiva, digamos, “underground” para salvar as aparências, quando era tudo sanguinolência, miséria e sofrimento. O “mundo cão” (brutal injustiça com os cães, criaturas fiéis/maravilhosas). Foi desativada nos anos 1980. Havia se tornado tóxica demais para consumo.

Durante toda a fase principal da ditadura, a “Folha” não teve editorial, confirmando a frase sábia de nossas avós de que “quem cala consente”. Enquanto isso os Mesquitas resistiam com o “Estadão” e “Jornal da Tarde”, na Major Quedinho, cruzamento da Consolação (1951-1976) e, em seguida, na Marginal Tietê. Eram conservadores e apoiaram o golpe, mas não se compactuaram com a truculência, o assassinato puro e simples e a tortura, além da corrupção que permeou todo esse processo.

Com editoriais censurados por agentes da ditadura instalados no jornal publicavam textos de Camões, no “Estadão” ou receitas de bolo, no Jornal da Tarde, a experiência mais rica de jornalismo criativo desenvolvida no Brasil com o “novo jornalismo” nos Estados Unidos por gente como Truman Capote, Norman Mailer e outros romancistas/jornalistas.

O Jornal da Tarde (JT) desenvolveu um jornalismo de cidades de puro refinamento comparado ao quase nada que se vê agora, onde brilhou o texto de Julio Moreno, aniquilado há tempos pela corrosão do neoliberalismo e a ganância por dinheiro estimulada desde a Faria Lima.

O JT foi o sonho de todo estudante de jornalismo da minha geração, abrigando textos de grandes repórteres como Randau Marques e Marcos Faerman. Trabalhei dois anos lá antes de uma viagem de exploração pela Europa. Foi a primeira vez em toda minha vida que parei de trabalhar para viajar, com resultados de que desfruto até hoje.

Em meados dos anos 1980, com o que chamamos por aqui de “redemocratização” ao menos o “Folhão” como o jornal era identificado, tratou de se adaptar, com recursos de certa mimetização sob a batuta de Boris Casoy, acusado de ter pertencido ao famigerado CCC, o Comando de Caça aos Comunistas, como se fossem literalmente canibais, com preferência pela carne fresca de criancinhas.

Mas devo ser justo: nunca tive problema algum com Boris. Ao contrário. Fui vitima de uma patifaria de alguém que, a certa altura, abriu minha gaveta sem meu conhecimento/autorização e utilizou dados que interpretou erradamente, porque também não me consultou quanto a isso. Recebi, para completa surpresa, uma “suspensão” de alguns dias sem vencimentos pela suposta falha. Indignado, procurei Boris Casoy, relatei o que havia acontecido, com apoio das minhas colegas de editoria (curioso que apenas mulheres se indignaram e me defenderam da patifaria) e então Boris suspendeu minha suspensão de forma imediata e se desculpou por isso.

O mesmo Boris Casoy, de memória prodigiosa, publicou como manchete principal do jornal um trabalho que fiz por força das circunstâncias (temia que sequer fosse publicada, menos ainda como manchete principal) sobre aborto clandestino. Por acaso/solidariedade, eu havia acompanhado uma amiga que deveria fazer um aborto, clandestino, evidentemente e fiquei chocado com o que pude ver.

Então resolvi expor as cenas desse submundo e procurei como fonte um aborteiro famoso, quase ao lado do apartamento em que eu morava, em Pinheiros: Isaac Abramovitch, médico legista do Instituto Médico Legal (IML) acusado de assinar laudos falsos durante a ditatura, integrante da equipe do temido Harry Shibata quem falsificou, entre outros, os laudos da morte por tortura do metalúrgico Manuel Fiel Filho, alterando-o por “ suicídio”. E também do jornalista Vladimir Herzog, a mesma versão manipulada. Herzog, à época um dos meus professores na USP.

Abramovitch, para minha surpresa, expôs essa realidade com completa transparência, como se falasse de alguma coisa como… corrida de cavalos. Em 2008 foi preso, acusado, entre outros crimes de posse de arma sem permissão e teve sua clínica fechada.

Na “Folha”, em 1983, com ajuda de Rogério Furtado. que conhece matemática estatística, coisa que não domino, calculamos, com metodologia específica, o número de abortos ilegais, portanto de altíssimo risco no Brasil, utilizados durante bom tempo, especialmente entre grupos de resistência feminista.

Foi um avanço, uma espécie de superação medieval: mas, para a “Folha”, também “melhoramento” um “lift”, como se diz em cirurgia plástica. Hoje considero que isso foi parte do “retoque” calculado na imagem da “Folha”, que então seria um jornal plural, para a leitura “crítica” de autores de “cartas para a redação”, coincidindo com o movimento pró eleições-direta, entre outras mudanças.

Boris Casoy foi entrevistado para o documentário importantíssimo do ICL. Até mesmo para se ter ideia de como agem os conspiradores da Faria Lima, de que o atual publisher da “Folha” é parte.

No domingo, veremos o que Boris tem a dizer.

Foto: Veículo do jornal usado pela repressão policial da ditadura destruído por forças da resistência política

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