Por Aydano André Motta, publicado em Projeto Colabora –
No seu cotidiano no Miguel Couto, Ivan Sant’Ana Dorio vai muito além do simples atendimento médico; envolve-se com os pacientes, numa dedicação impressionante
O assunto da aula de Biologia do curso pré-vestibular Miguel Couto, naquela manhã de 1970, era a evolução do sistema nervoso humano na escala animal. Em meio ao silêncio dos alunos concentrados, um deles cochichou com a colega do lado: “Vou fazer neurocirurgia na faculdade”. O sonho de alcançar a especialização mais sofisticada de toda a Medicina, difícil para qualquer um, parecia um delírio daquele menino negro. Mas ao menos dessa vez, o racismo do Brasil perdeu — porque Ivan Sant’Ana Dorio ganhou.
Agora, ele caminha apressado pelos apinhados corredores do Hospital Municipal Miguel Couto, uma das duas maiores unidades públicas do Rio. Chega todos os dias às 7h (apesar de o expediente começar às 8h), para tratar casos e pessoas de todas as classes sociais, idades, procedências. O passo miúdo ignora a artrose coxofemoral na perna direita, que o faz manquitolar, mas ele chega lá. Sabe os caminhos e a urgência que escolheu para a própria vida.
O doutor Ivan, como o chamam colegas, enfermeiros e pacientes, pratica medicina pública, gratuita, algo que mantém na conta de uma religião. Injeta amor fervoroso em seu ofício, numa montanha-russa cotidiana, que lembra os seriados médicos. Mas não se deixa contaminar pela indiferença, nem perde de vista a necessidade de se emocionar com as histórias que atravessam seu caminho.
“Medicina tem que ser exercida com paixão”, defende. “Ali vai o povo que precisa de verdade. Por isso, temos que ouvir os doentes, tocá-los, conhecê-los. A carência do setor público torna a rotina emocionante. Quando não vou, sinto falta”, revela, a voz modulada pelo entusiasmo de quem ama verdadeiramente o que faz.
O olhar classe média, adestrado por conceitos como “hotelaria” (basicamente um quarto bem decorado, como numa pousada) dos hospitais privados, desprezaria a opção de Ivan. Mas ele enxerga bem ao contrário, e avista a beleza do Miguel Couto na solidariedade, na parceria, na superação. “A rede pública precisa de tudo, mas é onde faço o que quero, do meu jeito. Nas unidades particulares, sou obrigado a pedir tudo ao plano de saúde”, explica. “Aqui, as pessoas necessitam da gente, demandam atenção”.
O guardião da saúde pública
A intensidade que orienta seu cotidiano nasce nas origens e se consolida na coleção de conquistas improváveis. Ivan cresceu em Bonsucesso, filho do vendedor Jaime e da costureira Robélia — “o meu Pelé”, como ele define a mãe, com voz embargada e olhos marejados. Ela acreditou no sonho do menino que, desde os 3 anos, pedia de presente uma maleta de médico e cresceu repetindo o projeto profissional.
E olha que obstáculo não faltou, até dentro de casa. Quando Ivan foi reprovado no vestibular, o racismo contaminou o pai. “Você é muito burro, não tem inteligência para ser médico. Seu lugar é sujando as mãos numa oficina”, desdenhou, com crueldade. “A frase doeu muito. Nunca mais esqueci”, relata Ivan, que ainda teve de convencer sua mãe a pagar o cursinho no Centro da cidade. O único dinheiro que sobrava era o da passagem, mas ele entendeu o tamanho da oportunidade. Sabia que não teria outra chance e fez vestibular para todas as universidades públicas cariocas. Passou também na Uerj e na UFRJ, mas se decidiu pela Escola de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, atual Uni-Rio. Entre os 126 calouros de 1971, foi um dos 10 negros, número até alto para o padrão da desigualdade brasileira.
Na família dele, apenas um tio, Milton, tinha curso superior — era advogado. No primeiro ano, Ivan costumava chamar atenção no ônibus, porque carregava um saco de ossos, para estudar em casa. Também se distinguia pelos jalecos, sempre impecáveis, imaculadamente brancos, parecendo novos. Dona Robélia fazia os trajes com as sobras de pano das encomendas que recebia no trabalho. (Muito Pelé, né não?) Yvone, a irmã caçula, transformou-se em parceira da vida inteira, de festas e perrengues.
Entre faculdade e residência, foram 10 anos de ralação, e de formatação da escolha pela saúde pública. Quando pediu vaga na neurocirurgia, o preconceito ressurgiu no desprezo de um monitor: “Um negro lá? Vão rir de você”. Ivan foi assim mesmo, passou pelo Souza Aguiar (a maior unidade pública do Rio) e cumpriu a residência no Hospital da Lagoa. Formado, aceitou convite para trabalhar em Goiânia.
Mas os 12 anos passados no Centro-Oeste foram de consolidação pessoal e profissional. Ivan casou-se com Dalva, teve dois filhos e amadureceu para, enfim, voltar ao caminho da saúde pública no Rio. Chegou em maio de 1992 e, logo depois, viveu dramas seguidos, com as mortes da mulher, por complicações do diabetes, e do filho mais velho, Marcelo, que não resistiu a um câncer no pâncreas. O mais novo, Carlos Eduardo, passara seis meses em coma, por ter nascido prematuro, mas sobreviveu, saudável.
No retorno, Ivan foi morar em Copacabana e encontrou nos amigos da Rua Domingos Ferreira a força para superar tristezas tão devastadoras. Assumiu outra vocação, a de boêmio, festeiro, fã de samba e jazz. Mais adiante, encontrou a felicidade definitiva no casamento com a jornalista Kátia Argento. Inegociavelmente alegre, hospitaleira, carioca até a medula, ela formou com o médico o par perfeito para rodas de samba, passeios pelo calçadão de Copacabana e festas com os inúmeros amigos. Ainda lhe deu os enteados Bernardo, Mariana e Klara e o neto Lucca. Amor em doses industriais.
O mesmo que Ivan mantém pelo trabalho. Em agosto de 2012, ficou famoso ao salvar a vida do operário Eduardo Leite, que chegou ao Miguel Couto com um vergalhão atravessado na cabeça. Comandou cirurgia de cinco horas, da qual o paciente saiu sem sequelas. Quando o rapaz chegou, ele acabara de operar uma moça, agredida violentamente pelo marido. Horas mais tarde, o filho dela, de 15 anos, procurou novamente o médico: “Quem vai cuidar da minha mãe? Não posso, porque tenho de ficar com a minha irmãzinha de 6 anos”. Ivan o abraçou e os dois choraram compulsivamente. Mais um dia na odisseia ofegante chamada Miguel Couto. (Em 2017, fez impressionantes 970 cirurgias.)
A história do vergalhão levou o Rio de Janeiro a descobrir o médico negro — lembre-se: está longe de ser trivial —, que dedica a vida aos pacientes na sempre desvalorizada saúde pública. Deu autógrafo na rua e entrevista no jornal. “O Eduardo teve sorte, pela posição que o ferro entrou”, explicou, num raro (e compreensível) momento de ansiedade. “Já acabou a entrevista? Preciso trabalhar”, avisou à repórter Elenilce Bottari, d’O Globo.
“Ele vai até na folga”, atesta Kátia, num sorriso. “Adora formar novos alunos e ajudar nos casos que chegam. Quando chega aqui, conta tudo e a gente chora junto”, completa, orgulhosa. “Meu negócio é medicina na veia”, ratifica Ivan, que conjugou profissão e lazer para se transformar no médico dos sambistas cariocas. Reconhecido nas rodas que frequenta, passou a ser procurado pelos artistas, enfeitiçados pela receptividade dele. “A medicina me ensinou a ter compaixão”, constata. “Quando a gente perde o doente, envelhece 10 anos. Mas quando salva, é aquela festa”.
Ele exalta o Sistema Único de Saúde (SUS), como o melhor do mundo, mas reconhece as carências, compensadas pelo esforço e dedicação dos profissionais. “O que a gente faz é pouco, mas pelo menos é alguma coisa”, avalia, modesto, repetindo o ensinamento de um antigo professor: “Não desistir nunca”.
E assim será com o doutor Ivan para sempre, enquanto a saúde (dele) permitir. “Só vou parar na hora de ir para o São João Batista, Inhaúma, Caju, onde for”, ele desfia os cemitérios da cidade, referindo-se ao dia que, pela felicidade da saúde carioca, demorará a chegar.
*Publicado originalmente no livro “Guardiões da Alma Carioca” (Editora Parideira Cultural)