O nome dela é Jennifer

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Mais um episódio da coluna “A César o que é de Cícero” do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Desta vez, Cícero César fala de uma aluna muito especial.

Acontece que a donzela / E isso era segredo dela / Também tinha seus caprichos (Trecho de “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque)




Por Cícero César

ME CHAMA DE JENNIFER. Sentou-se na primeira fileira, aquela que fica mais próxima da mesa do professor. Vestia a camiseta do colégio, mas dava para ver que por debaixo da camiseta havia um top.

A bermuda jeans tinha aqueles apliques que estavam na moda. Em vez do tênis do colégio, que achava muito demodê, calçava Havaianas do tipo plataforma.

Finalmente, o que me chamou a atenção, a tiara rosa com pedrinhas brilhantes com a qual adornava os cabelos cheios.

“Júnior!”, disse eu, mal dissimulando meu espanto. “Então, você está de volta?”

“Tô de volta, professor. Mas, faz um favor, me chama de Jennifer, tá bom?”

A chamada é um ritual da maior importância. Por vezes, para pegar no pé, digo o nome completo do aluno, com a maior cerimônia. Alguns deles detestam, o que torna a coisa mais divertida. Quando o nome é em inglês, uso uma pronúncia britânica de dois tostões. Soa “Djefersin”, “Seni” “Tricha” ou coisa que o valha.

Sabe como é que é, são gestos para levantar o espírito.

Mas era a primeira vez que teria que chamar um rapaz pelo nome que ele (ela) escolheu. Agi com naturalidade, decidindo-me chamá-lo de Jennifer dali em diante. Se eu fosse um professor mais tradicional, talvez tivesse tomado outra atitude.

Talvez tivesse encrencado com o rapaz que agora era menina, e que, para fins práticos, teria que chamá-lo pelo nome de batismo, em vez do nome real de fantasia.


Imagino que o pai, que lhe deu o nome de Júnior, não tenha sido tão compreensivo. Para se Júnior, é preciso ter o mesmo nome do pai, com o acréscimo “Júnior”. Imagino que este pai talvez tenha ficado desgostoso com a decisão do filho de se tornar, aos olhos de todos, uma “bicha”, um “baitola”, um “queima-rosca”, um “trans”, um “pervertido”, todos esses nomes feitos para cuspir com os quais os “desviantes” são chamados pelos “normais”.


Escrevi rapidamente no quadro a lição daquele dia: 1) Palavras transparentes; 2) Palavras em inglês que usamos corriqueiramente, tão corriqueiramente que nem prestamos atenção ao que elas significam. Jennifer tinha tirado do estojo rosa com estrelinhas umas canetas com aquelas cores psicodélicas e copiava a lição.

No fim da aula, trouxe-me uma letra de música para que eu traduzisse. Expliquei o que pude, muito embora não conhecesse o real sentido da letra da canção.


Jennifer, percebi, estava muito integrada à sala. Os meninos não perderam seu tempo em lhe dizer palavras obscenas, preferindo se concentrar na discussão a respeito da possibilidade do Barcelona voltar a ser o melhor time do mundo. Talvez, por isso, adiei a aula sobre “Homofobia”.

Não lhes falei que, certa vez em um churrasco de confraternização da turma do Pré-vestibular, joguei basquete com um travesti, com o/a qual ninguém tinha falado direito e que depois tive que aguentar as piadinhas do tipo “Quem foi que pagou basquete?”.

Não lhes falei da canção “Geni e o Zeppelin”, de Chico Buarque, do musical “A ópera do malandro” nem de Liniker e os Karamelos. Não lhes falei que tive um curso sobre “Queer studies” (Literatura gay), no curso de Especialização em Literaturas de Língua Inglesa da UERJ


Essas lembranças só me vieram depois, muito depois do primeiro encontro com Jennifer.
Eu acho tanta coisa cafona.

Anos se passaram depois do encontro em sala de aula com Jennifer. Não soube mais dela. Na verdade nem me lembrava mais de nada disso, quando topei com um dos alunos da turma, que me disse que Jennifer tinha sido espancada.

Alguns rapazes saíram de um carro escuro (o carro é sempre escuro) e lhe aplicaram um corretivo que a fez parar no hospital.

No hospital, de acordo com o relato do aluno, Jennifer pediu ao pai para que, na próxima visita, este levasse a tiara rosa com pedrinhas e o pôster do Justin Bieber para aliviar as solidões das noites.

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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