O ódio dos deserdados

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Por Ulisses Capozzoli, jornalista, no Facebook

A miséria, em todos os sentidos, que se espalha entre nós como praga bíblica fez de intelectual um palavrão, termo agressivo, ferramenta de xingamento. Uma tentativa de destruir aquilo de que não é possível tomar posse como um carro, uma bicicleta, uma cadeira. Você compra um carro, legaliza e ele é seu. Para o seu uso. Da mesma forma que uma bicicleta e, com uma cadeira, é ainda mais simples.




Deixem-me dizer, no entanto, os desavisados, que um intelectual é aquele que trabalha com ideias, com noções abstratas de uma dimensão conhecida como realidade. E ideias, as colunas que sustentam a realidade, não estão disponíveis com a mesma facilidade de um carro, uma bicicleta, uma cadeira. Ou uma bola de futebol.

O universo das ideias, da concepção da máquina do mundo, é de uma fascinante complexidade e para penetrá-lo é necessário tanto a impecabilidade de atitude quanto o refinamento do fascínio de quem aprende a andar no fio de uma navalha.

Dou um exemplo. As pessoas, de modo geral, pensam o tempo como um enorme capote, seja lá do que for, que cobre tudo o que os olhos possam observar. Assim, o tempo aqui e na superfície da Lua, uma distância minúscula em termos de Sistema Solar, é o mesmo. Mas isso é só um engano que ludibriou mesmo inteligências sofisticadas, como São Tomás de Aquino. A ponto de ele confessar: “se não me perguntarem o que é o tempo, eu sei. Mas se me perguntarem, eu já não sei”.

Uma frase que não faz sentido a muitos, mas que encanta outros. E não faz porque os não tocados pelo fascínio das ideias tendem a enxergar o mundo com os olhos de São Tomé: “ver para crer”. Santo Agostinho é mais sofisticado e só quem está decidido a uma preparação, que dura a vida toda, pode desfrutar do pensamento dele. Ainda que a maioria possa estar satisfeita com o que revelam os olhos míopes de São Tomé.

O acesso difícil ao universo das ideias é, então, motivo de inveja e isso é o que leva ao ódio e à tentativa de execração. Mais uma questão, ainda em relação ao tempo. Há uma forte suspeita, há evidências claras neste sentido, de que o tempo não existe em escala subatômica. Uma partícula pode-se decompor em outras, mas esse fenômeno é reversível, o que significa dizer que essa partícula pode ser reconstituída pelos seus componentes.

O tempo, para citar um único exemplo, não é nada do que parece aos nossos olhos. Mesmo quando nos barbeamos frente ao espelho, a cada uma das infinitas manhãs da Terra. O tempo, ao que tudo indica, se manifesta apenas a partir de certa escala de complexidade. E, no extremo, o tempo pode nem existir, o que ainda é mais estranho. Ideia que exige enorme determinação para ser devidamente assimilada.

Um intelectual, aquel(e)a que trabalha com ideias, como um marceneiro que processa a madeira, ou um pedreiro que levanta com pedras e cimento um edifício inteiro. Um escritor, um pintor, um artista, um cientista, são todos eles manipuladores de ideias e exatamente por isso são trabalhadores intelectuais. Trabalham com o intelecto.

O mundo, no estágio atual, tem suas bases no trabalho intelectual, o que não equivale a dizer que um jardineiro, por exemplo, seja um homem bruto. Digo isso porque é conveniente evitar confusões dispensáveis. Um avião de 500 toneladas e um navio cem vezes mais pesado, só voam com a facilidade de um pássaro, ou flutuam com a elegância de uma imensa baleia, porque estão sustentados por ideias representadas por uma teia complexa de cálculos e estruturas.

Filósofos, num florescimento impressionante que ocorreu na Grécia, a partir de Thales de Mileto (624 a.C.- 546 a.C.), estão na base da elaboração teórica da máquina do mundo, a realidade a que as pessoas se referem na vida cotidiana. Daí fizemos uma caminhada capaz de desvendar a intimidade das estrelas e sondar as portas da Criação.

O Universo nasceu de uma partícula que escapou de flutuações quânticas de um vácuo primordial num período infinito de tempo. Pessoas que julgam uma instância como essa como resultado de um engodo, não deveriam embarcar em um jato de 500 toneladas para uma travessia oceânica.

É um engodo da parte delas, voar nas asas do que consideram uma completa impossibilidade. Na manhã de hoje sofri um ataque como resultado de uma provocação aqui no Face. Provocar, para muitos, pode significar convite para uma briga. A raiz dessa palavra, no entanto, vem de “provocare”, o que significa “fazer falar” e, portanto, fazer pensar, levando em conta que as pessoas devem pensar o que dizem, em lugar de se comportarem como papagaios que falam por falar. Por pura imitação.

Eu, ao menos, nunca conheci um papagaio preocupado com o tempo, com a morte ou com o fato de o tempo poder nem mesmo existir. Nenhuma surpresa. O motivo do ataque? Uma postagem dizendo que “o problema dos idiotas é se acharem os mais lúcidos”, o que reflete o estado atual de degeneração da vida política e social no Brasil. Não creio que seja necessário citar exemplos do que anda acontecendo em termos da mais grotesca estupidez.

Devo justificar que acordei inspirado pelo jornalista americano Henry Louis Mencken (1880-1956), com quem partilho fascínio por um outro escritor/jornalista também americano Ambroise Bierce (1842-1914). Os dois são absolutamente geniais enquanto intelectuais. Quem duvidar disso que consulte um conto de Bierce com o título prosaico de “A dificuldade de atravessar um campo”. E veja se não tenho razão.

Imagem: Flautista. Remedios Varo, pintora hispano-mexicana

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