O Onírico Embarque e seu Surpreendente Desfecho

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Um texto de ficção do cronista, compositor e cantor Marco Aurélio Vasconcellos, de Porto Alegre.

Intitulado pelo Cícero César, também cronista deste Bem Blogado, de Gigante do Sul, o artista da música e das letras Marco Aurélio Vasconcelos nos leva aos ares, tirando os pés do sul real com um texto surreal (perdão pelo trocadilho (Washington Araújo).




Apertem os cintos!

O  portão de embarque  do Hotel Plaza São Raphael estava atravancado de gente.  O bulício e a euforia para aquela viagem ao exterior, patrocinada e organizada pela Ordem dos Advogados do Brasil, eram extremos e compreensíveis.

Minha mulher e eu nos postamos na fila para a apresentação dos bilhetes de viagem e despacho das malas.  Entrecortávamos a excitação do momento com o detido e preocupante exame da parceria que o evento nos iria proporcionar. 

Nessa pesquisa, vislumbramos profusa e variada representação da área jurídica, acotovelada em aparente equilíbrio: advogados de primeira linha, luminares do direito, defensores de porta de cadeia e obscuros bacharéis de causas ainda menores. Entre uns e outros, os chatos e inconvenientes.

Rejubilamo-nos com a presença do Dr. Rebouças e esposa. Cultos e afáveis, eram excelente companhia para aquele desconhecido tour por além-mar.  Por outro lado, contrafeitos, avistamos (por sinal vindo em nossa direção) o casal Morales, notórios importunos: ele, por falastrão e uisquemaníaco, exacerbando as virtudes do verbo e da inconveniência quando as doses ingeridas iam um pouco além da conta; ela, por seu mutismo e irritante submissão marital, ao ponto de aprovar, com tênues meneios de cabeça, as opiniões estapafúrdias de seu falante companheiro. Felizmente, o aglomerado de pessoas que circundava a fila nos ocultou e logramos, com alívio, passar desapercebidos.

Após cansativa espera, chegamos ao balcão de recepção de bilhetes e despacho de bagagem. Foi aí que se tomou conhecimento da inesperada notícia: o Jumbo estava lotado!  Os atendentes, com polidez, tranqüilizaram a todos, dizendo que não havia motivo para alarme e reclamações. Ninguém seria prejudicado e a viagem sairia tal como estava combinado. Em seguida, os excedentes – entre eles, nós -foram informados de que a acomodação seria feita num “vagão-extra”, que seria atrelado à aeronave!!

Protestos generalizados se seguiram, em especial do Dr. Lengroldt, antigo colega do serviço público, que adquirira notoriedade por sua truculência, impulsividade e posição firme na defesa daquilo a que se julgava com direito.

Todavia, a empresa aérea acabou convencendo a todos de que o tal “vagão-extra” era tão confortável quanto o Jumbo e de que o mecanismo de atrelagem era confiável, já que idealizado e produzido pela Embraer.

Num misto de convencimento e desconfiança, ficamos aguardando o momento do embarque, que logo se seguiu. Subimos com cautela a escada que conduzia ao interior do “vagão-extra” e localizamos nossos assentos, que ficavam sobre a asa em forma de delta. O aspecto interno daquele estranho anexo-aéreo era acolhedor e repousante, apesar da cafonice das escarlates luzes indiretas. No mais, tudo proporcionava confiança.

A despeito disso, o Dr. Lengroldt ainda esbravejava, atribuindo o inusitado episódio à insensibilidade e à desorganização da entidade promotora da viagem.

Nervoso, senti irresistível vontade de ir ao banheiro, começando a procurá-lo com insistência. Percebendo minha intenção, a “vagão-moça”,  informou que eu deveria aguardar a decolagem. Atirei-lhe um olhar irônico e, com um muxoxo, sentei-me contrafeito, preocupando-me em ajustar o desconfortável (por óbvios motivos) cinto de segurança.

Em seguida, os motores do Jumbo estrondejaram, repenicando as vidraças e vitrinas adjacentes. Nossas costas grudaram no espaldar das poltronas, enquanto, lá fora, os edifícios da Av. Alberto Bins iam ficando para trás. Aguardávamos, com grande expetativa, o momento de as construções circunvizinhas, embaixo, irem se apequenando, o que logo aconteceu.

De forma inexplicável, no entanto, a aeronave e seu “vagão-extra” teimavam em manter-se a não mais do que cinqüenta metros do solo. Começamos a ficar apreensivos quanto ao êxito da decolagem, pois a impressão que se tinha era de que o peso adicional dificultara a manobra. Olhamos à volta e notamos a preocupação estampada no rosto dos viajantes.

 Já se vislumbrava, adiante, a Praça da Alfândega, precedida do Largo dos Medeiros. Houve, então, um discreto estalido metálico, seguido de um súbito aumento da rotação dos possantes motores do Jumbo, que, para o espanto de todos, não era acompanhado pela progressão da velocidade do “vagão-extra”. E isso era confirmado pelo sentimento de que nossas costas haviam deixado de comprimir o espaldar das poltronas.  O Largo dos Medeiros, foi, então, ficando cada vez mais próximo, até que, mansamente, o nosso “vagão” pousou na calçada da praça.

Não houve percalços nem atropelos no desembarque. E ainda deu tempo para que os frustrados viajantes daquele estranho objeto voador pudessem ver o Jumbo cintilando como uma estrela, a perder-se para os lados da banda oriental.

                                                    

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