O “ouro branco” que destrói tradições e mata na América do Sul

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Mulheres indígenas do povo Diaguita travam luta ancestral contra a extração de lítio em seus territórios

Por Maria Clara Parente, compartilhado de Projeto Colabora




Na foto: Piscina de evaporação de lítio na Argentina. Tonelada do metal chegou a 85 mil dólares em 2023, dez vezes mais do que era em 2020. Foto Susi Maresca

De um lado, veículos elétricos, celulares, computadores, shopping centers, jardins verticais, pets, uma smart city “verde”. De outro, comunidades inteiras sem água, luz, comida, sem conexão com práticas ancestrais de seus povos, vivendo em meio a ecossistemas destruídos, expostas à doenças devido ao contato com materiais tóxicos da indústria. O que conecta os dois cenários? Um mineral conhecido como “ouro branco”, o lítio, apontado como fundamental para a transição energética verde.  Mas, segundo a ativista do povo indígena Diaguita, da Argentina, Lourdes Albornoz, “uma bicicleta elétrica ou um carro com bateria de lítio é produzida com o sangue de nossos pássaros sagrados, de nossas comunidades”. Isso porque esse metal, que é responsável pela maioria das baterias, considerado uma opção às energias fósseis, destrói muitos ecossistemas e modos de vida em seu processo de extração.

Um dos principais focos das propostas de transição energética dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODSs) até 2030 é eliminar a dependência de combustíveis fósseis e garantir o acesso confiável e a preços acessíveis à energia limpa para todos. Mas quando o assunto é a corrida pelo “ouro branco”, que passou a valer 85 mil dólares por tonelada em 2023 (dez vezes mais que em 2020), essa conta deveria desconsiderar muitas violências implicadas nesse processo.  Em 2020, o ex-presidente Jair Bolsonaro criou uma parceria com o governo dos EUA para a extração de metais críticos na geração de energias renováveis, e em fevereiro deste ano, o encontro do presidente Lula com Biden também focou na cooperação entre os países para este mercado em ascensão.  Apesar do “futuro promissor” anunciado para a extração do metal no Brasil, que hoje se concentra em Minas Gerais, o país ainda é coadjuvante na produção no cenário mundial.

As montanhas são nossas mães, são sagradas. O gelo é a água que veio de períodos de milhões de anos atrás, guarda muita memória e muitos seres vivos. E daí chegam essas empresas que querem explodir a montanha como se fosse somente recurso

Lourdes AlbornozAtivista do povo indígena Diaguita, da Argentina

Atualmente, a Austrália lidera, seguida pelo Chile, que junto com Bolívia e Argentina são chamados de “triângulo de lítio” sul-americano, concentrando a maior reserva de lítio do mundo (57%), em lagoas consideradas sagradas pelos povos que ali vivem há milhares de anos. Por conta da crescente indústria, as paisagens cinematográficas de imensas salinas brancas e piscinas de azul turquesa da região foram transformadas em imensas piscinas para evaporação de água, porque para extrair uma tonelada de lítio é preciso evaporar dois milhões de litros de água. Além dos lagos e rios, as salinas também sofrem com o impacto da mineração, apesar de serem consideradas uma das zonas úmidas que devem ser protegidas de acordo com a Convenção de Ramsan, estabelecida em 1971. O acordo foi criado com o intuito de proteger os habitats aquáticos fundamentais para a vida de aves migratórias e posteriormente ampliado para a promoção da sustentabilidade desses locais e das populações humanas que deles dependem.

A rede transandina “Ancestras del Futuro”, formada só por mulheres, tem como objetivo revitalizar as práticas ancestrais desses povos. Foto Julieta Abril
A rede transandina “Ancestras del Futuro”, formada só por mulheres, tem como objetivo revitalizar as práticas ancestrais desses povos. Foto Julieta Abril

“Os minerais extraídos pela mega mineração a céu aberto fazem parte dessa cadeia de consumo que começa com o nosso sacrifício, com a nossa morte, e termina com as commodities que podem ser compradas no mercado” pontua Albornoz. Para a ativista, moradora da província de Tucuman, um dos fatores que amplia o problema é a escala dos empreendimentos: “A escala humana é segura. É saudável. É possível. Mas, quando usamos qualquer coisa massivamente, isso é um problema porque estamos pegando mais do que podemos trazer de volta”. Para a ativista, o combate à crise climática precisa se pautar na redução do modelo de desenvolvimento, “reduzindo a necessidade de transporte, para reduzir as energias fósseis, nucleares e elétricas”.

Enquanto para aqueles que chegam para extrair o minério a montanha é um recurso para lucrar, para os povos ancestrais, a montanha é família. Como explica Albornoz: “As montanhas são nossas mães, são sagradas”. Assim como a água que também é sagrada e guarda memórias antigas. “O gelo é a água que veio de períodos de milhões de anos atrás, guarda muita memória e muitos seres vivos, que foram até eles para receber essas informações. E daí chegam essas empresas que querem explodir a montanha como se fosse somente recurso”.

Antes os campos eram livres, sem veículos, agora as crianças não podem mais ir por causa do risco de atropelamento e os animais também. Tudo mudou, em todos os sentidos, e não se pode mais viver tranquilamente de cinco anos para cá

Elisabeth MamaniAtivista do povo indígena Diaguita, da Argentina

O povo indígena Diaguita, que habita um território ancestral que abrange as províncias de Salta e San Juan até o mar chileno, resiste contra os processos colonizatórios há milhares de anos. “As trocas eram parte da vida cotidiana desses povos, que não conheciam fronteiras antes da colonização” conta Albornoz. Atualmente 67.000 diaguitas vivem na Argentina e mais de 88.000 no Chile. De acordo com o último Censo da Argentina de 2010, 955.032 habitantes se auto identificam como  indígenas em todo território argentino, o que corresponde a 2,5% da população do país.

As províncias de Jujuy, Salta e Catamarca, na região noroeste do país, concentram os empreendimentos de extração do minério em crescimento graças à combinação de escassas restrições ambientais e impostos, que fizeram o país se tornar o quarto no ranking de produção mundial. Um dos locais mais conhecidos na rota da extração do metal é a região do Salar del Hombre Muerto, localizado na província de Catamarca. O nome da região, batizada em 1920 por um geólogo parece uma antevisão macabra do que a região se tornou mais de cem anos depois.

Um dos locais mais conhecidos na rota da extração do lítio é a região do Salar del Hombre Muerto, localizado na província de Catamarca. Foto Susi Maresca
Um dos locais mais conhecidos na rota da extração do lítio é a região do Salar del Hombre Muerto, localizado na província de Catamarca. Foto Susi Maresca

A região inaugurou a extração de lítio no país, em 1997, com a empresa estadunidense Livent, através de sua filial Minera Del Altiplano AS. O método de exploração na região consiste em perfurar poços de até duzentos metros para extração da salmoura (solução de água saturada de sal) que depois é transportada para grandes piscinas e após secar ao sol, o lítio é separado do magnésio e de outros minerais. É justamente essa evaporação das águas subterrâneas que acaba com a vidas dos lagos e das populações que por tantos anos viveram junto com esses lagos. Atualmente, a região abriga várias empresas da Austrália, do Canadá e também da própria Argentina (veja a lista completa aqui), o que tem aumentado muito os conflitos na região.  Em uma publicação do dia 10 de fevereiro deste ano, do movimento Antofagasta por el Agua, que tem como lema “A água e a vida valem mais do que o lítio”, publicou uma denúncia de despejo de material tóxico da mineradora e de animais se alimentando dos resíduos: “Muitas vezes os habitantes da região encontram animais mortos sem saber o motivo de suas mortes”.

Uma das ativistas Diaguita, Elisabeth Mamani, que luta há vinte e cinco anos contra a mineração na região do Salar Del Hombre Muertoconta que a empresas de lítio mudaram completamente vidas, em um processo que se agravou durante a pandemia de covid-19, período em que os maquinários de extração ganharam força: “Hoje tudo mudou. Antes os campos eram livres, sem veículos, agora as crianças não podem mais ir por causa do risco de atropelamento e os animais também. Tudo mudou, em todos os sentidos, e não se pode mais viver tranquilamente de cinco anos para cá”. Mamani retomou a sua relação com a ancestralidade indígena aos dezessete anos, quando retornou ao território que sua família tinha sido obrigada a deixar porque seu pai foi obrigado a prestar serviço militar. Decidida a reencontrar suas raízes, ela embarcou numa viagem de vinte e quatro horas, sozinha, no meio da imensidão do deserto. “Nunca me esqueço de tudo o que passei para voltar à terra do meu pai. Talvez toda aquela luta seja uma marca na pele para defender o território “, relembra.

Para fortalecer a ancestralidade e as unir as mulheres indígenas que lideram a resistência contra a mineração na região do Triângulo do Lítio, durante a pandemia, Lourdes Albornoz criou uma rede de união transandina chamada “Ancestras del Futuro” com objetivo de revitalizar as práticas ancestrais desses povos. Para Albornoz, a rede, gerida de forma horizontal, não é exatamente um projeto ou uma organização, mas um “modo de ser”, um chamado para se reconectar com a ancestralidade dessas mulheres unidas por uma ancestral comum, a água da Cordilheira dos Andes.

Lourdes Albornoz (à esquerda), uma das lideranças do povo Diaguita: “Uma bicicleta elétrica ou um carro com bateria de lítio é produzida com o sangue de nossos pássaros sagrados, de nossas comunidades”. Foto Julieta Abril
Lourdes Albornoz (à esquerda), uma das lideranças do povo Diaguita: “Uma bicicleta elétrica ou um carro com bateria de lítio é produzida com o sangue de nossos pássaros sagrados, de nossas comunidades”. Foto Julieta Abril

A reciprocidade é a ética do grupo: “se nós queremos cuidar de uma terra, a última coisa que precisamos é de dinheiro. Porque o dinheiro tem uma outra lógica e a terra tem a sua própria”.  Eu tenho muito orgulho de dizer que nesses três anos de existência da rede, nós nunca recebemos nenhum tipo de ajuda financeira de ninguém. O que é importante para gente é a reciprocidade, dos princípios, da cultura”. Mulheres de todas as idades, muito diferentes entre si, fazem parte do grupo, o que cria um ambiente propício para as trocas: “todo nosso conhecimento é coletivo”. Primeiro foram encontros online e depois presenciais, que têm como foco temas variados que precisam ser “curados”.

Os debates variam desde questões ancestrais sobre suas culturas e colonização até discussões sobre a questão trans e binaridade de gênero. Nos encontros realizados, sempre algumas mulheres, que se chamam umas às outras de irmãs, cozinham umas para as outras e se revezam como anfitriãs dos encontros. Ao entrar para a rede, as mulheres entram coletivamente no caminho de volta para ancestralidade: “Dizer que você faz parte de uma comunidade, que esse grupo te abraça, fortalece para que você saiba que você pode fazer tudo que quiser fazer.” conta Albornoz. Uma das iniciativas que exemplifica o poder dessa força coletiva é a recuperação da própria língua Diaguita Kakan, que tinha sido proibida durante a colonização espanhola e considerada extinta. Agora o grupo está trabalhando coletivamente para recuperar através de expressões, canções e palavras que foram guardadas pelos mais velhos de geração a geração.

A ativista Elisabeth Mamani faz parte da rede e é uma das mulheres que teve sua vida transformada pela experiência coletiva: “Ser parte de Ancestras Del Futuro me faz sentir muito bem porque aprendo muitas coisas e são pessoas que sempre se apoiam em todos os sentidos, com quem compartilhamos palavras de alento diante de tantas lutas comuns. E quando nos sentimos sozinhas, sentir a força espiritual dessas mulheres é muito importante. Me sinto orgulhosa e agradecida de fazer parte desse grupo. Grata também aos nossos ancestrais, que nos guiam. Com diferentes problemas, somos uma só ao mesmo tempo”. Foi justamente a sabedoria dos ancestrais, segundo Albornoz, que garantiu ao longo de tantos anos a vida dos Diaguita, o que não tem valor econômico possível de medir e que são relacionadas ao conhecimento dos quatro elementos: fogo, ar, terra e água.  Em janeiro deste ano, as mulheres da rede se encontraram no Chile para trocar sabedorias ancestrais e criar estratégias coletivas. Para Albornoz, “A nossa esperança é que nossa luta seja compartilhada por outras pessoas no mundo”.

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