O Programa Fantástico, revista eletrônica semanal da Rede Globo, trouxe na sua edição de primeiro de março mais uma matéria com a finalidade de mostrar a situação da saúde no país. Sei que não se pode esperar muito de uma “matéria jornalística” produzida por esta emissora para um programa desta natureza. Mas esta em particular me incomodou por ser um tema verdadeiramente importante para a sociedade e pela forma como foi construída: uma pitada de sensacionalismo, um pouco de má fé, superficialidade abundante e desinformação maquiada de notícia. Uma fórmula leviana bastante conhecida do público brasileiro, infelizmente.
Com a chamada “Como estão funcionando os postos de saúde Brasil afora?”, a matéria, de cerca de 14 minutos, fez um passeio por vários Estados brasileiros para apresentar aos telespectadores “a situação precária, caótica e escandalosa sofrida por milhões de brasileiros que dependem do atendimento do SUS – Sistema Único de Saúde”, afirmação feita pelo apresentador do programa. A iniciativa, segundo a emissora, foi incentivada a partir do acesso a uma pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Medicina. Sem me ater à forma, coisa que deixo para os estudiosos da comunicação, gostaria de questionar o conteúdo e a temática, ou seja, a crítica subliminar e escamoteada sobre o SUS.
A criação do SUS, em 1988, foi a cristalização da luta de muitos anos realizada por trabalhadores da área da saúde e por movimentos sociais que queriam ver presente no texto da Constituição Federal a garantia do direito da população brasileira a um sistema de saúde integral, universal e gratuito. A luta foi intensa para criá-lo e continua sendo para seu aperfeiçoamento cotidiano. Tivemos a ousadia de criar um Sistema Único de Saúde e mantemos este mesmo sentimento para defendê-lo e melhorá-lo.
Então por que incomoda a apresentação de uma matéria como esta? Primeiramente, pelo fato de utilizá-la como ferramenta ideológica de desqualificação do SUS e por querer formar e consolidar preceitos que coloquem a privatização da saúde como a única saída para esta situação. Basta ver as citações imperativas expressas no texto da reportagem com a finalidade de ampliar a impressão sobre aquilo que as imagens demonstravam: “alarmante”, “revoltante”, “triste realidade”, “martírio”. Ou seja, o texto quer fazer entender que estamos próximos do fundo do posso e não temos como emergir.
A CUT – Central Única dos Trabalhadores e a CNTSS/CUT – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Seguridade Social defendem os profissionais desta área que atuam nos setor público, como também os do privado, e a população que necessita de um atendimento cada vez mais amplo e qualificado. Uma das nossas bandeiras é justamente a luta por mais recursos para a área pública de saúde. Lutamos para que todos os entes da Federação invistam de imediato aquilo que é o mínimo determinado na legislação. Mas queremos muito mais.
Responsabilidades, recursos e gestão participativa
O SUS estipula as obrigações de cada ente da Federação no que diz respeito aos serviços prestados à população. Aos Municípios cabe o atendimento em Atenção Básica, ou seja, nas instâncias iniciais que compõem o sistema e que se ocupam dos cuidados de menor complexidade e com ações preventivas e de combate às endemias. Neste caso se encaixam os equipamentos visitados pela reportagem, pois são postos de saúde ou UBS – Unidades Básicas de Saúdes, conforme nomenclatura do Sistema. Aos Estados e à União ficam os cuidados por serviços de média e alta complexidades, que correspondem a todos os demais atendimentos de saúde.
Posto isto é fácil entender que as “mazelas” apresentadas na reportagem são de responsabilidade das Prefeituras, pois são elas que prestam este atendimento inicial. Não da União, como a reportagem quer fazer entender. O sistema preocupou-se em determinar que os vários entes federativos pudessem ser cobrados pela sociedade e por instituições capacitadas para tal. Os usuários dos serviços mencionados na matéria, ou até mesmo a equipe de reportagem, poderiam procurar, como exemplos, o Conselho Municipal de Saúde, que tem a participação da sociedade; o Ministério Público e até mesmo a auditoria do SUS para denunciar e pedir a resolução dos problemas. É um papel social importante o de cobrar responsabilidades junto aos órgãos qualificados.
Os entes da Federação são acompanhados sistematicamente para que suas responsabilidades sejam cumpridas adequadamente. Metas são estabelecidas e devem ser atingidas para que possam obter recursos da União. O estado das unidades apresentadas na matéria está aquém de qualquer proposta ou protocolo de trabalho estabelecido pelo SUS tanto no aspecto material como também de recursos humanos. Há nestes casos o indício claro de mau uso dos recursos por parte das administrações municipais. Situações anômalas deste tipo devem ser encaminhas às respectivas instâncias de fiscalização e punição para que sejam corrigidas. Ou seja, antes da “crucificação” do SUS feita pela reportagem era fundamental que fosse observada de quem é a real culpa. Volto a frisar: neste caso é exclusiva da Prefeitura.
O Ministério da Saúde encaminha aos Municípios e Estados os recursos que devem ser aplicados em programas, serviços e equipamentos vinculados as suas respectivas redes. Hoje, temos também a Emenda Constitucional 29, aprovada no ano de 2000, que apresenta parâmetros para os investimentos mínimos de recursos para o financiamento da saúde. Ficou estabelecido que a União deve investir o montante do ano anterior mais a variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB). Os Estados precisam aplicar 12% do que arrecadam anualmente em impostos. Os Municípios precisam investir 15% de sua receita. Mas sabemos que o preceito da lei não é cumprido por todos.
Queremos, então, que os pontos financiamento e responsabilidade também façam parte das discussões presentes na mídia. Hoje queremos 10% das receitas da União empregadas na saúde. Para que isto ocorra seria importante a criação de novas fontes de recursos. Este tema é hostil para a imprensa e para segmentos da sociedade. Basta relembrar o massacre que foi feito para derrubar a CPMF – Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira. Diagnósticos atuais colocam que seria possível arrecadar quase R$ 50 bilhões ao ano com esta contribuição. E, mais recentemente, a iniciativa de criação da CSS – Contribuição Social sobre a Saúde. Quem não se lembra da grita da imprensa contra estas contribuições financeiras.
Não somos favoráveis a mais impostos, mas sabemos que é preciso definir as fontes de recursos a serem aplicados na saúde. Não basta apenas definir a distribuição. É preciso que os trabalhadores, os segmentos sociais e as instâncias da sociedade interessados neste tema possam construir e consolidar mecanismos de gestão participativa destes recursos. Estamos falando agora de outro fantasma presente na “cabeça” da mídia e da elite brasileira: a questão da participação popular. O SUS tem em sua estrutura a ferramenta de criação de Conselhos. É um bom começo.
Privatizar interessa a quem?
A privatização da saúde é um fenômeno presente em nosso país e que merece ser atacado. Um processo crescente que não observa a qualidade e nem a quantidade atendimento esperadas. Por que digo isto? Por entender que o crescimento do setor privado da saúde é constante e sua efetividade deixa a desejar. Então dizer que o setor público é caótico e que o seu contrário, setor privado, é eficaz não condiz com a realidade. Recentemente abordei este tema em outro texto. Atualmente são cerca de 1,3 mil operadoras, com 48 milhões de usuários. Estudos indicam que em 2011 o faturamento global deste setor girou na ordem de R$ 85,5 bilhões. Números estratosféricos que não trazem a qualidade esperada. Dados apresentados pelo IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor apontam que os diversos planos de saúde lideram o ranking de reclamações nos últimos 11 anos.
Posso ilustrar este fenômeno a partir de pesquisa divulgada pela Associação Médica Paulista e encomendada à Datafolha em outubro de 2013. Diz o texto publicado na Rede Brasil Atual: “Nos últimos dois anos, um em cada três beneficiários de planos de saúde de São Paulo tiveram de recorrer ao Sistema Único de Saúde (SUS) ou a profissionais particulares devido a demora, a problemas ou à negativa de atendimento da rede credenciada. Este percentual aumentou 10 pontos entre 2012 e 2013. Ao todo, 79% dos usuários de planos de saúde de São Paulo relataram ter tido problemas nos últimos dois anos, relacionados principalmente a demora no atendimento e a falta de opções na rede credenciada. No universo dos 10,4 milhões de usuários da saúde privada de São Paulo, o percentual representa 8,2 milhões de pessoas.”
O que quero dizer com isto? Não tem para onde ir? Não é nada disto. Quero desmascarar ilusões fantasiosas sobre realidades que não são verdadeiras. O atendimento em saúde não é péssimo por ser público e nem tampouco excelente por ser privado. Mas o nosso país foi vanguarda em trazer na sua Constituição Federal a designação de um Sistema tão amplo como o SUS, mesmo sabendo que seria gerido por entes da Federação tão distintos. É um modelo ousado, pois permite a participação na sua condução. Basta que haja organização social para manter e ampliar este processo que é e sempre será contínuo.
Para quebrar preconceitos é preciso inevitavelmente eliminar conceitos como os que o Fantástico quis passar. Temos que ser duros com situações como desta matéria que apresenta parcialidades, superficialidades e não vai ao encontro do centro da questão. Transferir responsabilidades do sistema não elimina defeitos ou cria virtudes imediatas. A União não tem responsabilidade exclusiva sobre o SUS. Estados e Municípios desempenham papeis complementares e precisam ser questionados quando não cumprem suas atribuições.
O SUS é visto em âmbito internacional como um exemplo bem sucedido de política pública de saúde. É preciso que seja permanentemente melhorado e qualificado para que possa produzir a excelência no atendimento que os brasileiros têm direito. Outro ponto crucial é a valorização das várias categorias profissionais que fazem com que este grande sistema funcione.
Os meios de comunicação, principalmente os que são concessão pública, como é a TV e o Rádio, deveriam se ater a qualidade e veracidade da informação transmitida e fazer um debate mais aprofundado e não ideologizado com a sociedade. Concordamos que é uma situação que absolutamente não pode continuar, mas vamos cobrar a quem é devido dando nomes aos responsáveis seja quem for. Assim o “martírio” mencionado pela reportagem de quem usa o sistema de saúde pública não seria também sentido por alguém que liga a televisão em sua casa e é presenteada com “cavalos de troia” deste tipo.