O pai, o filho, o Espírito Santo e a psicanálise

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Um garoto de 16 anos adentrou duas escolas na cidade de Aracruz, no Espírito Santo, e disparou muitos tiros contra algumas pessoas. Matou três, duas professoras e uma aluna de apenas 12 anos, e feriu outras 13. Pelos vídeos, vê-se que o adolescente sabe atirar, ele treinou. As armas eram duas pistolas do pai, uma de calibre 38, a outra 40. Para cometer os crimes, dirigiu o carro do pai, ocultando os números das placas. Escondeu também sua própria identidade, encapuzando o rosto. Após a matança, estacionou o carro na casa de praia da família, guardou as armas e desfez as suásticas que havia marcado com fita adesiva em sua roupa. Sim, suásticas! Ao que parece, se reuniu com a família após a matança. Mas a polícia o achou e pegou.

Pedro Cattapan, compartilhado do Blog Psicanálise, arte e cultura




Já escrevi em outro post sobre o nazismo no Brasil, não quero voltar a isso. Prefiro me solidarizar com as vítimas, tal como fez o também capixaba Richarlison, centroavante da seleção brasileira que está brilhando na Copa do Mundo e para quem vale também o que eu disse a respeito de Gal Costa: todos gostam dele, é uma rara figura porque, num momento de divisão do país, consegue criar um espírito de união. Diante de uma escalada de ódio e violência no país, como se vê nos atos deste rapaz simpatizante do nazismo, é muito importante apostar nas forças que criam laços entre as diferenças, como sempre fez Gal Costa e como, por algum tempo, fez a seleção brasileira – e parece estar voltando a fazer, com o carisma e o futebol do ‘Pombo’ Richarlison. Penso que a psicanálise, enquanto prática de escuta, respeito e afirmação da diferença, também tem esse potencial, não como imagem ou ideal aglutinador, mas como prática micropolítica de liberdade.

Twit de Richarlison a respeito dos assassinatos em Aracruz/ES

Mas a psicanálise é uma coisa e a palavra ‘psicanálise’ é outra…O pai do assassino de extrema-direita que parece imitar cenas que estamos acostumados a ver nas escolas dos Estados Unidos, Fabio Castiglioni, de quem se tem fotos de camisa da seleção brasileira em atos bolsonaristas junto do filho, se apresenta publicamente como, além de, sem muito espanto, policial militar, psicanalista – para o espanto de muitos, dentre eles eu mesmo. 

É bem mais sobre o pai do que sobre o filho que quero falar, mas antes de partir para uma discussão virtual com esse assim intitulado psicanalista, gostaria de recomendar aos leitores que assistam ou revejam “Tiros em Columbine” (MOORE, 2002), filme documentário em que Michael Moore se pergunta quais seriam as condições para que os E.U.A. tenham repetido compulsivamente os massacres em escolas e universidades. Dentre as condições, aparecem algumas que não havia (ou não se percebia com tanta nitidez) no Brasil e, agora, todavia, existem: a facilitação na compra de armas, a reiteração de uma moral de winners e losers, a proeminência do moralismo religioso na avaliação de cada movimento da vida do fiel, como também a gestão de populações através de uma cultura do medo.

Imagem das câmeras de segurança de uma das escolas onde ocorreram os assassinatos. Vemos o jovem de 16 anos vestido para matar, utilizando de táticas de assalto especializadas. Parece treinado.

Falando em cultura do medo, talvez não tenha havido ideologia que foi mais longe com a estratégia do medo do que o nazismo: o medo do comunismo e da conspiração judaica seria a justificativa para se utilizar de toda a crueldade do mundo contra estes supostos inimigos. Nas publicações em redes sociais feitas por Fabio Castiglioni, era possível ler uma recomendação de leitura: “Mein Kampf” o livro escrito por Adolf Hitler em 1923, livro proibido no Rio de Janeiro, mas não no Espírito Santo. Não se pode mais encontrar este post pois o autor o apagou, mas na internet nada está realmente apagado – e essa informação já foi recolhida pela polícia e pela imprensa que a difundiu. O pai do atirador justifica assim a recomendação de leitura: para ele “ler é uma das chaves de expansão da consciência…”. Segue dizendo que ler…

“…ativa regiões neurais ligadas às recompensas, que é o sistema Accumbens. Núcleo Accumbens Humano (Acc) é a principal estrutura do Estriado Ventral. Constitui uma interface límbico-motora e tem um papel central nos circuitos de recompensa cerebral. Cumpre funções emocionais, motivacionais e psicomotoras, estando envolvido em diversas patologias neuropsiquiátricas” (sic.)

Agora, após saber dos assassinatos cometidos pelo filho diz que o livro é horrível e que o que seu filho fez também é. Talvez sempre tenha achado, no entanto, o que se pode dizer é que sua mensagem nas redes sociais era ambígua. Ser ambíguo quando o assunto é nazismo, digamos, é perigoso e sintomático. Conduta que encontramos em líderes da extrema-direita internacional como Trump, Orbán e Bolsonaro. Além do problema em si de este sujeito em particular recomendar, nas redes sociais, a leitura do livro-acontecimento do nazismo, a justificativa é algo da ordem de qualquer coisa parecida com neurociências, mas não tem nada a ver com psicanálise.

extrato do Post de Fabio Castiglioni em que recomenda a leitura de “Mein Kampf

Explico meu leitor: a psicanálise se ocupa de escutar Inconsciente do sujeito a partir de seu discurso; o Inconsciente só existe ao se escutar um discurso; é por isso que Freud, logo em seu primeiro dos artigos destinados a transmitir e discutir a técnica analítica, “O manejo da interpretação dos sonhos” (FREUD, 1911), tenta esclarecer a diferença da posição do psicanalista para uma outra que ele indica que se distanciaria demais da psicanálise. O assunto, propositadamente, é a interpretação dos sonhos, o berço da teoria e a mais difundida prática psicanalítica.

Antes de apresentar o argumento de Freud no artigo, quero lembrar os leitores que o livro “A interpretação dos sonhos” (FREUD, 1900) teve como um dos principais objetivos mostrar a todo mundo que o Inconsciente existe: todo mundo sonha e o sonho é a realização de um desejo inconsciente. Freud segue, no livro, dizendo que qualquer um pode interpretar seus sonhos e, assim fazendo, constatará a comprovação de sua teoria. Mas o artigo de 1911 foi escrito com o espírito de esclarecer um problema clínico: num tratamento psicanalítico o psicanalista escuta o relato do sonho, ele não tem acesso direto ao sonho do paciente; o relato do sonho vem, aliás, cheio de comentários, interferências por acontecimentos posteriores ao próprio sonho que são associados àquele, esquecimentos, incertezas etc. Enfim, o relato do sonho não é, de modo algum, idêntico ao sonho. Será que isso inviabilizaria o acesso ao Inconsciente? Lembremos que Freud chamava o sonho de ‘via régia de acesso ao Inconsciente’ (id., 1900)!  

A resposta de Freud é um não categórico. Muito pelo contrário! Quem quer eliminar o intervalo entre o sonho e o analista está eliminando justamente um sujeito que fala. Ora, o sujeito do Inconsciente não é um sujeito escondido, substituído pelo relato, ele está no relato. É isso que Freud sinaliza como o material da técnica analítica, seja da escuta, seja da interpretação. Uma suposta ciência dos sonhos que elimina o sujeito que relata e observa ‘empiricamente’ e ‘diretamente’ o objeto se aproximaria, sem dúvida, da ciência médica que não escuta o sujeito, e sim o organismo dessubjetivado, encontrando no sujeito um inconveniente idealmente superável. 

Cartaz de “Tiros em Columbine” (Michael MOORE, 2002)

Lacan arremata em “A ciência e a verdade” (LACAN, 1965) que a psicanálise escuta, confere existência e dignidade, justamente ao sujeito – aquilo que é foracluído pela ciência. O sujeito é efeito da articulação, na fala, do encadeamento de significantes, com os engasgos, equívocos, ambiguidades e ruídos que porventura possam aparecer quando alguém toma a palavra, ele não está no objeto de que se fala nem num imaginado ente anterior à palavra. Sendo assim, do ponto de vista psicanalítico, o sujeito não está nos neurônios e nas regiões do cérebro – ele está nesta experiência entre humanos que é o falar a alguém, ele está nas tramas do discurso.

Logo, sem entrar na discussão se o que Fabio Castiglioni escreve está de acordo com as teorias neurocientíficas mais modernas ou se parece simplesmente disparatado, na medida em que ele se apresenta como psicanalista, tenho de dizer: o que ele escreve nada tem a ver com a psicanálise – ao contrário, é oposto à psicanálise. Assim sendo, fico curioso em saber se ele sabe disso ou não, se é ignorante quanto ao assunto ou se não é ingênuo. Se é ignorante ao assunto, o mínimo que se pode dizer é que sua formação de psicanalista só lhe deu o nome ‘psicanalista’, mais nada, ele foi enganado, sofreu um golpe, e aí vemos os perigos destes diversos trambiques ofertados por aí, muitos na internet, oferecendo formação psicanalítica rápida, barata e fácil, com diploma e garantia de clientela. “Quando a esmola é grande, o santo desconfia”.

Se, por outro lado, Fabio sabia disso, então ele também não é psicanalista. Seu argumento destitui perversamente a psicanálise e põe em seu lugar o campo das neurociências. Um psicanalista que propõe como argumento ou como tratamento algo que retira a psicanálise de cena, um psicanalista que em última instância não oferece psicanálise é um psicanalista? Um ano antes do artigo sobre a técnica citado, Freud escreveu um artigo sobre esse assunto e ali cunhou o termo psicanálise selvagem para práticas desta ordem (FREUD, 1910). Retornou, de certo modo, ao assunto, em “Observações sobre o amor transferencial” (id., 1915), ao sinalizar que, diante da demanda do paciente, o analista toma uma posição original, que não encontra par fora da relação analítica, ele nem atende à demanda, nem a rejeita – ele convida o paciente a fazer análise. Enfim, o que um psicanalista propõe é psicanálise, simples assim. Aquele que se diz psicanalista e propõe como argumento ou tratamento algo que produz o silenciamento do sujeito se distanciou demais da psicanálise.

Michael Moore 

Se não bastasse este texto esquisito e muito distante do que podemos chamar de psicanálise, nosso personagem (real), em sua descrição do Instagram escreve: “Servir ao Senhor Deus Altíssimo, esse é o dever de todo ser humano” (sic). Ora, o psicanalista não é um doutrinador, ele escuta crentes, descrentes, fiéis, infiéis, praticantes de quaisquer e nenhuma religião, pois sua ética não é marcada pelo dever de respeitar um código moral (ele não é um reforçador de supereu! [FREUD, 1923]); sua ética é outra, diferente, subversiva em relação à moral.

A moral estabelece um campo de regulação de condutas as julgando como boas ou más, normais ou anormais, justas ou injustas, fiéis a Deus ou infiéis e por aí vai. Estabelece critérios de julgamento dos humanos e de seus atos interditando alguns, prescrevendo outros e, deste modo, estabelecendo uma meta de quem os sujeitos devem ser para serem aceitos por um grupo. Uma escuta moral – e a escuta religiosa é obviamente moral – é marcada de cabo a rabo pela vontade de concertar, adequar o outro à moral aceita. Um psicanalista não procede por essa escuta, sua escuta é, como diz Freud, uniformemente suspensa de valores, preferências ou expectativas (FREUD, 1912), porque, dentre outros motivos, somente assim é que ele cria condições para que o paciente exprima o que este último já julga como vergonhoso, culpável, estranho, errado etc e que não consegue dizer a ninguém (nem a si mesmo), e parece relacionar a seu sofrimento e a seu sintoma. Ao se sentir acolhido, sem ser julgado, ao dizer o que quer que seja, o paciente pode se defrontar com seu discurso e nele reconhecer a afirmação de um desejo inconsciente. 

Eu dizia que a ética da psicanálise não é a da condução moral do rebanho. E não é mesmo! A ética da psicanálise, como proferiu Lacan, é a ética do desejo (FREUD, 1959-60). Isso quer dizer que o psicanalista não é alguém que adequa um desejo à moral…ou pior, o reprime. O psicanalista sustenta a aparição do desejo como uma experiência afirmativa do sujeito do Inconsciente – o desejo, essa fissura subversiva do indivíduo moral, não deve ser combatido, mas sustentado pelo psicanalista. É por isso que um psicanalista não afirma que o dever de todo ser humano é servir ao Senhor. Um psicanalista não doutrina à moral, mas ao desejo, que traz, muitas vezes, embaraço a essa moral.

Novamente Fabio atesta que não é psicanalista.

É por isso que uma prática que está se tornando cada vez mais comum no Brasil é, em termos psicanalíticos, uma barbeiragem. Me refiro à associação da psicanálise com dispositivos de catequese ou doutrinação religiosa, ou mesmo com a exigência, por parte dos analistas, de que seus pacientes ou analistas sob supervisão sigam a mesma cartilha moral ou ideológica. Hoje há instituições que dizem formar psicanalistas cristãos. Isso é tão ofensivo e violento seja à psicanálise seja aos pacientes quanto o que o Estado nazista sob Hitler fez com a mesma: inventou uma tal de psicanálise ariana. E não é que Fabio conhece o nazismo de perto? Ele leu “Mein Kampf“! E não é que seu filho, para matar, se marcou com suásticas? 

A psicanálise como prática de liberdade e afirmação do desejo morre quando se torna moral, doutrinária e ideológica. Ela se torna uma mera palavra, um nome, que serve de aval para a instrumentação da violência ao sujeito, uma forma de dominação que relembra o que Foucault disse em “A história da sexualidade 1” (FOUCAULT, 1976): que a psicanálise é uma herdeira histórica da prática católica da confissão; em ambas o confessor/psicanalista localiza no desejo sexual do fiel/paciente sua verdade – porém, a diferença entre ambas é retumbante e é a própria condição para a psicanálise NÃO SER simplesmente a continuidade daquela prática católica: a diferença é que o padre condena moralmente o desejo enquanto o psicanalista o sustenta como afirmação da liberdade do sujeito.

Sessão de descarrego televisionada

A tal psicanálise cristã que vemos no Brasil é evangélica, não católica, é verdade. Diga-se de passagem, nos começos da psicanálise brasileira, houve bastantes padres psicanalistas. Mas hoje o fenômeno é evangélico e interpreto isso da seguinte maneira: a prática da confissão católica é muito eficaz na dominação dos sujeitos, porém é interditada entre evangélicos – inclusive como marca diferencial em relação ao catolicismo. A dominação evangélica das almas segue a tradição protestante de revelação e expiação pública das faltas e pecados (FOUCAULT, 1972-73); no caso da modalidade evangélica isso se vê nas sessões públicas de descarrego, por exemplo. No entanto, parece que se sabe, de algum modo, que o controle do outro é menos eficaz através desta moralidade do olhar da comunidade do que da interdição internalizada praticada na confissão católica. Uma saída, um meio de se apropriar das práticas confessionais sem nomeá-las como tal é instituir a psicanálise cristã. Ou se trataria de um retorno do recalcado católico, afinal a maior parte de quem hoje é evangélico ou foi ou é filho de quem foi católico!?

Finalmente, Fabio cita diversas vezes um tal Instituto de Desenvolvimento e Estudos da Saúde Mental. Peço que desculpem minha ignorância, mas nunca ouvi falar deste instituto. Procurei por ele na internet e não encontrei nada. Se alguém puder ajudar e informar que lugar é esse ou ao menos se ele existe ou não, seria enriquecedor. E caso ele exista, seria bom que lá auxiliem o Fabio a se reposicionar em relação à psicanálise, que não parece ser mesmo a sua praia.

Rogo encarecidamente aos praticantes de doutrinação moral, ideológica e religiosa que não chamem o que fazem de psicanálise. Deem outro nome! Porque querem utilizar o nome da psicanálise ‘em vão’? É por seu prestígio? Secretamente a cultuam como um Deus ou apenas como uma imagem? É para destituir o poder subversivo da psicanálise?

Se à última pergunta a resposta é sim, só me resta orar: em nome do pai, do filho e do Espírito Santo…Pai, não os perdoe, eles sabem o que estão fazendo! 

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