O país preso na doença de suas cadeias

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Conjunto de ONGs denuncia encarceramento excessivo no Brasil e defende soluções urgentes para a mazela

Por Aydano André Motta, compartilhado de Projeto Colabora




A cena sufocante corre no ritmo da tosse em off de um dos participantes, num ambiente cinza escuro, superlotado de homens – pretos ou quase pretos, na descrição de Caetano –, em farrapos, alguns sem camisa. Um varal se estende à frente da pequena janela bloqueada com grades.  Faz calor. Todos olham para o espectador e disputam o espaço para desfiar suas lamúrias.

A tosse não para.

A câmera 360° não deixa dúvida: eles se esbarram num espaço muito menor do que o necessário àquele número de pessoas. Um dos homens estende um papel: “Tem meu nome, tem meu RG, tem o nome da minha mãe também. (…) A gente precisa sair desse lugar. Dá essa força aí, aquele abraço, vai na fé”. Um outro ecoa: “Não esquece de mim, não aguento mais isso aqui não”.

A tosse não para – piora, mais seca e intensa.

É a “Realidade visceral” das superlotadas cadeias brasileiras, título do vídeo de 2min25seg, da Rede Justiça Criminal, conjunto de ONGs que desenvolve a campanha “Encarceramento em massa não é Justiça”. No país que tem a quarta população carcerária do mundo, 40% dos detentos estão privados da liberdade sem condenação definitiva. O quadro apocalíptico de cadeias, penitenciárias e presídios abarrotados amplifica a violência, afastando-se de qualquer solução possível.

“Há 622 mil pessoas em condições subhumanas nas prisões brasileiras”, conclui o vídeo, que utiliza dados oficiais de 2014; hoje, os números são maiores. Em seguida, vem o pedido de assinatura eletrônica na petição “Prisão não é justiça”, que reivindica atendimento aos detidos sem julgamento e a humanização dos encarcerados.

Uma agenda subestimada no bate-boca cotidiano da segurança, contaminada pela gritaria por mais presos, mais cadeias, mais intolerância no que seria o “país da impunidade”. Verdadeiro como uma nota de três reais – porque aqui se prende muito e inutilmente. “Os brasileiros desconhecem a realidade do encarceramento em massa no país”, constata Janaína Homerim, secretária-executiva da Rede Justiça Criminal. “A sensação equivocada é alimentada constantemente pela mídia – programas policialescos, redes sociais, noticiário da imprensa, escândalos de corrupção etc – e orienta o termômetro da opinião pública”.

Ela acrescenta que a ignorância e o clamor popular contaminam os responsáveis por cuidar do problema – os parlamentares, que têm o poder de alterar a legislação e exigir soluções do Executivo. “Alguns parlamentares desconhecem profundamente a dinâmica e os efeitos do sistema de justiça criminal; outros até têm mais conhecimento, mas argumentam que seus eleitores querem mais punição, mais segurança, mais justiça”, analisa.   Só que tal correlação simplesmente não existe – daí a campanha.

Hoje, ainda não há uma lei nacional que institua as audiências de custódia – e uma pessoa, mesmo inocente, pode ficar presa por meses até que seja ouvida pela Justiça

Assim, a Rede Justiça Criminal busca sensibilizar os brasileiros médios, dispostos a ouvir (algo tragicamente raro hoje em dia) sobre a mazela. “Tentamos falar para quem não acompanha o tema, levar a seu conhecimento uma realidade desconhecida, ou até mesmo voluntariamente ignorada”, projeta a secretária-executiva. “Nosso objetivo é circular em meios sociais, entre profissionais os mais diversos possíveis, para alimentar um debate hoje muito enviesado e irracional”.

O foco equivocado explica o silêncio que soterrou os desdobramentos dos massacres no início do ano, em presídios do Norte e Nordeste do país. Superado o horror das imagens de gente sendo degolada diante das câmeras, com 133 mortes apenas nos primeiros 15 dias de 2017, o assunto caiu no esquecimento. As celas seguem superlotadas, o Brasil mantém o ritmo na produção de novos detentos, o atendimento judicial continua a passo de cágado manco, falar em programas de ressocialização soa como ofensa ao distinto público – e a espiral da violência só faz crescer. Não se engane: os fatos estão conectados.

Somente no sistema prisional de Manaus, os massacres mataram 64 pessoas, numa guerra entre o PCC e a Família do Norte, duas das maiores facções criminosas do Brasil. Dois meses após o banho de sangue, ainda havia 112 foragidos na capital amazonense e as investigações sobre as ocorrências não apresentavam resultados relevantes.

A aplicação da lei e dos tratados internacionais de direitos humanos que protegem as mulheres e seus filhos precisa ser garantida para podermos reverter a situação de injustiça e violência que atinge essas pessoas de maneira avassaladora

No Rio Grande do Norte, o secretário de Segurança, Caio Bezerra, reconheceu a crise que causou 26 mortes no massacre na Penitenciária de Alcaçuz–, unidade com 620 vagas, onde havia 1.083 presos. O panorama não mudou, de lá para cá.

Com os assassinatos ainda em curso, o secretário da Juventude do governo Temer, Bruno Júlio, verbalizou sem constrangimento a intolerância de boa parte da população. “Eu sou meio coxinha sobre isso. Sou filho de polícia, não é? Tinha era que matar mais. Tinha que fazer uma chacina por semana.”

Assim, toca a banda no país da quarta população carcerária do mundo, atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia – sem qualquer traço de empatia. A Rede Justiça Criminal contabiliza um aumento de 167,32% no número de presos desde 2000; ao menos 45% dos detidos cometeram crimes sem violência; 62% declaram-se negros; e, claro, faltam 250 mil vagas nas cadeias, presídios e penitenciárias. “E sobram ilegalidades”, sublinha Janaína Homerim, enfatizando ser problema da sociedade inteira. “A violência do cárcere só aumenta a violência nas ruas”.

Uma segunda iniciativa da rede tenta sensibilizar as pessoas para o problema. Na Avenida Paulista, em São Paulo, foi instalada uma pequena cela, na qual Emerson Ferreira, que cumpriu pena de 4,5 anos dividindo nove metros quadrados com outros 40 detentos, oferece um equipamento para as pessoas assistirem ao “Realidade visceral”. As reações variam da incredulidade às lágrimas e terminam em abraços solidários no ex-presidiário.

A missão da Rede Justiça Criminal vai além da conscientização. A organização propõe quatro medidas básicas para melhorar o sistema prisional:

  1. Audiência de custódia: qualquer pessoa presa em flagrante tem direito a uma audiência com um juiz em até 24 horas. “A legislação internacional determina que toda pessoa detida deve ser apresentada ao juiz o mais rápido possível. Estas audiências têm por objetivo verificar a legalidade e a necessidade da prisão, mas também inibir maus tratos e torturas pelas forças policiais, práticas ainda frequentes no Brasil”, aponta Janaína. “Ao permitirem um contato presencial entre a pessoa presa e o juiz, aumentam a possibilidade de aplicação de medidas cautelares alternativas à prisão. Hoje, ainda não há uma lei nacional que institua as audiências de custódia – e uma pessoa, mesmo inocente, pode ficar presa por meses até que seja ouvida pela Justiça.”
  2. Nem um dia a mais: garantia da imediata liberação de quem já cumpriu sua pena. “Muitos presos poderiam estar em liberdade ou cumprindo penas mais leves, ou em regimes mais brandos. No entanto, devido à burocracia, aos longos tempos de duração dos processos e à dificuldade de acesso à Justiça, caem no esquecimento dentro dos presídios, sem qualquer perspectiva de futuro. Segundo a lei brasileira toda pessoa condenada por um crime, com o passar do tempo e mediante bom comportamento, tem direito de cumprir pena em situação que não exija a privação total da sua liberdade. É a chamada progressão de regime, que permite, gradativamente e mediante a observação de uma série de requisitos, que a pessoa condenada volte a conviver em sociedade. Na prática, no entanto, os direitos de milhares de homens e mulheres são negligenciados cotidianamente. Para garantir que se cumpra o previsto em lei, toda pessoa presa deve ter acesso ao andamento de seu processo para saber por quanto tempo ficará detida e quando poderá ter direito à progressão de regime. É necessário instituir mecanismos eficazes de monitoramento da execução da pena, impedindo que pessoas fiquem presas além do permitido.”
  3. Prisões superlotadas: se não há vaga, não se pode prender. Prisões superlotadas geram mais violência. “Há várias formas de reverter a política de superencarceramento e evitar injustiças. Uma delas é proibir a inclusão de pessoas em estabelecimentos penais em número superior à sua capacidade. É simples: se não cabe, não entra. Além disso, são necessários mecanismos que possibilitem a avaliação periódica dos processos das pessoas presas, garantindo que sejam postas em liberdade aquelas que, nos termos da lei, estejam privadas de liberdade de forma ilegal ou desnecessária.”
  4. Direito das mulheres: gestantes e mulheres com filhos menores de 12 anos têm direito a aguardar seu julgamento fora da prisão. “Entre 2000 e 2014 houve aumento de 503% do número de mulheres presas no Brasil. Estima-se que 3 em cada 10 delas estejam na cadeia à espera do resultado final de seu processo. As encarceradas no Brasil são em sua maioria jovens, pobres, negras e solteiras, grande parte mães e, predominantemente, as principais responsáveis pelo sustento de seus filhos. A lei já prevê que mulheres grávidas e mães de crianças de até 12 anos devam aguardar o julgamento fora da prisão. A aplicação da lei e dos tratados internacionais de direitos humanos que protegem as mulheres e seus filhos precisa ser garantida para podermos reverter a situação de injustiça e violência que atinge essas pessoas de maneira avassaladora. A liberdade é a regra, a prisão deve ser somente a exceção.”

Porque o Brasil precisa se libertar com urgência do vergonhoso estado de seu sistema prisional.

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