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Levantamento feito pelo site Fogo Cruzado revela que 14% das unidades de saúde da cidade foram atingidas por tiroteios durante a quarentena
Os casos graves de covid-19 precisam de internação, respiradores e unidades intensivas de tratamento. São centenas de pessoas aguardando por leitos do Sistema Único de Saúde (SUS) no Rio de Janeiro. Mas nem sempre a lotação é a única dificuldade. A ameaça pode estar dentro de casa ou no caminho até o hospital. Segundo um levantamento da plataforma Fogo Cruzado, entre os dias 14 de março e 13 de maio, cerca de 14% das unidades de saúde – públicas e privadas – da região metropolitana do Rio foram impactadas por tiroteios durante esses dois meses de quarentena.
Muitas dessas unidades ficam próximas às favelas. Se levarmos em conta apenas a rede pública, 31% das trocas de tiros aconteceram num raio de até 300 metros. E 29% destes tiroteios tiveram a participação de policiais militares. Para Nayara Rocha, médica da Clínica da Família do Complexo do Alemão, onde na última sexta-feira 13 pessoas morreram em decorrência de uma operação policial, o quadro do sistema de saúde piora muito quando a pandemia e os tiros se encontram. “É triste que no meio de um sistema sobrecarregado, as pessoas tenham que chegar feridas em função de uma operação policial”.
A capital do Rio foi a região onde foi registrado o maior volume de tiroteios: 183 no total.
A Vila Kennedy, favela que fica na Zona Oeste da cidade, teve 29% desses incidentes. Saindo do Rio, Niterói e São Gonçalo foram os municípios que registraram o maior número de ocorrências. E foi em São Gonçalo, exatamente, que se deu uma das histórias mais tristes deste período de isolamento. Na última segunda-feira, dia 18, o adolescente João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, foi morto durante uma operação da Polícia Federal com apoio da Polícia Civil no Complexo do Salgueiro. O adolescente foi socorrido de helicóptero, mas não resistiu aos ferimentos. Sua família encontrou o corpo horas depois no IML de Tribobó, após uma saga em busca de informações.
No início da noite desta quarta-feira (20), um jovem de 18 anos morreu após ser baleado na Cidade de Deus, Zona Oeste do Rio. João Victor Gomes da Rocha tinha saído para comprar uma pipa. O Movimento Frente Cidade de Deus, um projeto que faz ações sociais na comunidade, distribuía os alimentos aos moradores na área conhecida como Pantanal quando o tiroteio começou. De acordo com a Polícia Militar, agentes do 18º BPM (Jacarepaguá) e da 41ª DP (Tanque) foram até o local para checar denúncias sobre tráfico de drogas e, ao entrarem na comunidade, teriam sido recebidos a tiros.
Os tiroteios no Rio estão provocando mortes também das formas mais inusitadas. Foi o que aconteceu com dois pacientes que estavam internados no Hospital Ronaldo Gazzola, um centro de referência para o tratamento de coronavírus na Zona Norte do Rio. O motivo? A falta de luz causada por um tiroteio. O Ministério Público instaurou inquérito para apurar a responsabilidade pelas mortes dos dois pacientes. A direção do hospital, a Prefeitura e a concessionária de energia elétrica ainda precisam prestar esclarecimentos sobre o incidente.
Não muito longe dali, em Cordovil, Leandro Rodrigues da Malta, perdeu a vida seis minutos depois de entregar alimentos para a comunidade. A solidariedade nas favelas e bairros periféricos tem sido interrompida em diversos momentos durante a pandemia. Quem vem sentindo de perto os reflexos da violência são os muitos voluntários que se mobilizam para arrecadar e distribuir doações e alimentos. De acordo com o Instituto Data Favela, sete em cada dez família já tiveram a sua renda diminuída nesse período.
“Outro dia tivemos uma demanda de 300 cestas. Conseguimos fazer uma imensa aérea de distribuição, o caminhão voltaria para o galpão para reabastecer, quando do nada começou um tiroteio. A equipe ficou abaixada, estavam de colete-cinta, touca, luva, máscara e óculos”, conta Renata Trajano, uma das coordenadoras do Gabinete de Crise do Alemão.
A ONG Rio de Paz teve de suspender por horas a entrega de 100 cestas básicas no Jacarezinho no dia nove de maio. Mesmo com o tiroteio, pessoas se juntavam esperando pelos alimentos. Lucas Louback, um dos articuladores da organização, relata uma das lembranças mais fortes daquele dia:
“Uma senhora muito abatida contou que havia perdido o filho no dia anterior. Ele havia sido sepultado naquela manhã, e a mãe foi diretamente para a entrega dos alimentos. Quando perguntamos a causa da morte, ela explicou que ele tinha febre, falta de ar e tosse”. O laudo dizia que ele havia falecido por morte natural.
Para Lidiane Malanquini, coordenadora de Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré, “é preciso que o Estado esteja nesses locais garantindo direitos”. Direitos. É o que voluntários, moradores de favelas e médicos nesses territórios exigem. Direitos.