Por Alexandre dos Santos, compartilhado de Projeto Colabora –
Sucesso de personagem da Marvel no cinema confirma a valorização da África no cenário mundial dos quadrinhos
De todos os heróis africanos ou afrodescendentes criados pelos dois maiores estúdios de quadrinhos dos EUA, a Marvel e a DC Comics, o Pantera Negra é um dos mais conhecidos e cultuados. Essa é, certamente, uma das razões pelas quais ele foi o escolhido para ganhar um filme – que recebeu sete indicações ao Oscar – e enriquecer o álbum cinematográfico do panteão de heróis da Marvel, deixando bem evidente o esforço da indústria cultural norte-americana em dar evidência a personagens e heróis negros. Quase um revival da blaxploitation dos anos 1970 com o personagem que foi o primeiro herói africano a aparecer em uma HQ (no número 52 de Quarteto Fantástico).
Hoje, no momento em que os conceitos de “representatividade” e “lugar de fala” adquirem cada vez mais peso e presença na sociedade, o investimento de US$ 120 milhões da Marvel Studios no filme do Pantera parece muito maior. Basta prestarmos a atenção às reações como a dos jovens negros norte-americanos ao se depararem com o cartaz do filme. O narrador, atrás do próprio celular comenta: “É assim que os brancos se sentem o tempo todo, desde o começo do cinema. Você se ver empoderado desse jeito… e representado!” Uma reação legítima de quem não costuma se enxergar nos filmes, nas séries, nos cartazes ou nas propagandas.
A afirmação deles também encontra eco do outro lado do Atlântico. Jide Martin, presidente e fundador da editora Comic Republic, um dos maiores estúdios de quadrinhos da Nigéria, concorda que “(a estreia de Pantera Negra) significa que os africanos podem assumir papéis de liderança sem medo de falhas ou rejeições do público em geral e do mundo do entretenimento como um todo. Ela abre a janela para uma programação de televisão mais afrocêntrica que, por sua vez, cria um lugar de destaque para atores africanos e afro-descendentes, melhorando assim a vida dessas pessoas e de suas famílias. Um bom exemplo disso é John Boyega, de quem me orgulho de dizer que é um nigeriano que frequentemente retorna à sua pátria e nos inspira por ser um ícone”, disse ao #Colabora.
Ter um protagonista negro numa franquia bilionária como a de Guerra nas Estrelas é uma das provas de que as grandes editoras de HQ e os estúdios estão com a bússola apontada para o lado certo, unindo representatividade e demandas de mercado. Os heróis negros (americanos ou africanos) estão se tornando cada vez mais populares.
Mas o que diferencia e destaca o rei T’Challa (o Pantera Negra) dos demais super-heróis é o fato de ele ser o rei de uma nação africana, a fictícia Wakanda, que no universo da Marvel está localizada entre as fronteiras do Uganda, do Sudão do Sul e do Quênia. O país de T’Challa também é uma superpotência tecnológica e política mundial. Um país rico e poderoso militarmente devido à exploração do vibranium, um minério virtualmente indestrutível e com capacidades de absorção de energias. Para entender a importância desse metal na cosmologia da Marvel, basta dizer que ele só existe no reino de Wakanda e que o escudo do Capitão América foi feito de uma fusão do vibranium com o adamantium (o metal do qual foram feitas as garras e o esqueleto do Wolverine).
Wakanda também é um reino tradicional. A tecnologia de ponta convive hamoniosamente com os rituais sociais e espirituais ancestrais dos wakandenses. Tanto as vestimentas comuns do dia-a-dia quanto as que caracterizam a realeza e os círculos militares refletem a decisão da não-ocidentalização do país e de manutenção dos seus valores ancestrais. Não pode haver nada que reflita mais o conjunto das ideias afrofuturistas do que Wakanda e o rei T’Challa.
Ironia ou não, o Pantera Negra foi criado em 1966 (no esteio do movimento pelos direitos civis nos EUA) por dois homens brancos: o roteirista Stan Lee (pai de boa parte dos personagens da Marvel) e o roteirista e desenhista Jack Kirby (também responsável pela criação de vários personagens tanto na Marvel quanto na concorrente DC Comics).
A partir de 1977 o herói ganhou um título próprio, capitaneado por Kirby e que durou apenas 15 números. Pelo menos outras quatro séries do Pantera Negra foram lançadas e canceladas desde então. A atual é escrita desde 2016 pelo jornalista, educador e escritor Ta-Nehisi Coates, autor de “Entre o Mundo e Eu”(editora Objetiva), o primeiro escritor negro a efetivamente escrever um personagem negro de destaque. “Quando eu era criança, eu sabia que os super-heróis não eram exclusivamente brancos e masculinos. E custa menos aos quadrinhos do que aos filmes representar essa diversidade”, disse Ta-Nehisi ao The Guardian, meses antes de estrear como roteirista do Pantera. Mas ser negro não é o único critério para se escrever uma boa história, destaca Jide Martin, da Comic Republic, cujos heróis e roteiristas são todos negros. “Eu recomendo que, além da habilidade, experiência e exposição, a orientação cultural seja necessária. Isso garante que não tenhamos uma história sobre a África escrita por uma pessoa – negra ou não– que nunca tenha estado em qualquer país do continente africano.”
Esse foi justamente o caso do personagem Batwing, o policial congolês David Zavimbe, criado em 2011 para ser o “representante africano” da Corporação Batman, uma tentativa de internacionalizar a franquia Batman e criar personagens que despertassem o interesse e a empatia de outros públicos. Batwing ganhou uma revista própria no mesmo ano, escrita por um roteirista experiente, Judd Winick. Mas o que Winick e a DC Comics fizeram foi um desfile interminável dos clichês mais batidos a respeito do continente africano. David mora na cidade fictícia de Tinasha, em meio a ruas de terra batida e casebres. A família dele é vítima de uma perseguição étnica e morre massacrada. Ele e o irmão, órfãos, se tornam meninos-soldados do mesmo senhor da guerra que ordenou o genocídio da aldeia onde moravam. A África é claramente tratada como um país e não como um continente, já que Batwing consegue se deslocar com rapidez impressionante entre a República Democrática do Congo e o Egito, por exemplo. A incongruência e a falta de conhecimento do roteirista duraram impressionantes 19 edições, quando a DC resolveu reformular o personagem. Batwing deixou de ser um herói africano para ficar baseado em Gotham City. Mas, ao menos, continuou negro: Lucas “Luke” Fox, um lutador de MMA graduado no MIT e filho do diretor mais importante das indústrias Wayne.
O erro com Batwing parece ter gerado uma boa reflexão entre as grandes editoras. Tanto que no fim de 2017 a Marvel anunciou a sua primeira heroína nigeriana: a cadeirante Ngozi. Na verdade Ngozi é o primeiro personagem africano de uma grande editora americana a ser escrito por uma roteirista africana, Nnedi Okorafor. O título da história é Blessing in Disguise (algo como “há males que vêm para o bem”) e como Okorafor é um escritora de ficção científica nigeriana, a ação se passa em Lagos, antiga capital e maior cidade da Nigéria. Ngozi era uma atleta e se tornou cadeirante depois de um acidente de ônibus. “Minha protagonista sofreu um acidente e a vida dela mudou radicalmente de uma hora pra outra”, disse Okorafor ao jornal britânico The Independent. A inspiração para a criação da personagem foram as 276 estudantes da cidade de Chibok, que foram raptadas pelos terroristas do Boko Haram em 2014. O fato causou comoção em todo o mundo e foi responsável pela criação da campanha #bringbackourgirls (tragam nossas meninas de volta). “Elas eram meninas como quaisquer outras e, de repente, tiveram suas vidas viradas do avesso. Quis usar a fé, a esperança e a perseverança delas em Ngozi”, conclui Okorafor, que acaba de escrever uma minissérie em cinco edições do Pantera Negra pela Marvel.
Apesar de curta (apenas oito páginas) a história de Ngozi é um divisor de águas e o fato de se passar em Lagos não é apenas uma coincidência. A cidade, hoje, é a mais densamente habitada por super-heróis em todo o continente. Só perde para Nova York, onde vivem praticamente todos os super-heróis da Marcel e da DC. Os principais responsáveis por esse aumento na densidade demográfica da cidade são os presidentes dos dois maiores estúdios da Nigéria: Jide Martin, do Comic Republic e Roye Okupe, do YouNeek Studios. “Era importante criar histórias em que os leitores africanos pudessem se ver”, afirma Okupe, que foi escolhido um dos 100 africanos mais influentes de 2017 pela revista New African Magazine. “Mas acho que isso é importante para qualquer tipo de leitor, não importa de onde você é. A África é tão rica em cultura. Além de ser importante criar histórias em que os afrodescendentes possam se ver, vejo uma tremenda oportunidade de inserir histórias e ideias novas e altamente atraentes em uma indústria que precisa desesperadamente de algumas. E isso também vale para Hollywood “, Jide Martin complementa: “Nunca se criou tanto como se cria aqui e agora. Lagos é a Nollywood dos quadrinhos.” Toda uma nova geração de crianças e jovens nigerianos e de outros países africanos de língua inglesa estão sendo influenciados pelos mais de 50 personagens criados pelos dois estúdios de quadrinhos. “A estreia do filme do Pantera Negra tem potencial para aumentar o interesse nesses personagens”, confirma Jide Martin, que usa o Comic Republic também como uma plataforma de ajuda a outras startups semelhantes. “A África está prosperando e temos muitos talentos. E a África é o centro dessa nova criatividade. O continente africano está surgindo na cena internacional dos quadrinhos com conteúdo e ilustrações de qualidade, já que nossas histórias e lendas são riquíssimas e representam um excelente ponto de partida para inúmeras histórias. O interesse dos leitores traz possibilidades de investimento e com isso os super-heróis africanos se tornarão uma norma. Preparem-se!”
Oxalá!