Craque e ídolo do futebol, Adriano renunciou ao olimpo do esporte profissional em nome da própria felicidade, num lugar que a sociedade racista do Brasil não tolera: a favela
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Na foto: Adriano emoldurado pela Vila Cruzeiro: endereço de felicidade. Foto acervo pessoal
O Brasil teima em sabotar os talentos que brotam em suas comunidades populares e periféricas. A sociedade racista que se alastrou por aqui despreza quem não cabe na sua caixinha preconceituosa. Assim, se não for branco, homem, heterossexual, rico, não presta. Se o Prêmio Nobel nacional tiver nascido num desses rincões, ele não vai se consumar, vítima de um arcabouço social implacável.
Mas a favela vira o jogo e insiste em produzir preciosidades.
Uma delas oferece lições de pertencimento, coragem, identidade e amor, rompendo convenções e caretices. Adriano Imperador quebrou com elas, como fez com as defesas adversárias dos tempos de artilheiro. Chegou ao olimpo do futebol internacional, tornando-se o maior centroavante do planeta – mas renunciou a tudo, pelo seu lugar no mundo: a favela.
Nas viagens com a seleção brasileira, quando o avião sobrevoava a Vila Cruzeiro, o atacante abordava os companheiros, para apontar, orgulhoso, a comunidade do Conjunto de Favelas da Penha, Zona Norte carioca, onde nasceu e cresceu. O ajuntamento caótico de casas pobres, órfão de saneamento, pavimentação e quase todas as obrigações do Estado, tinha, para ele, o inegociável status de paraíso. Nenhum canto sobre a Terra o fazia se sentir melhor – seu império verdadeiro.
A trajetória de Adriano no futebol ajuda a explicar sua preferência. Começa pelo esforço dramático de sua avó, dona Wanda, que atravessava o Rio de trem e ônibus, levando pela mão o neto adolescente, da favela até a Gávea, para ele tentar a sorte no Flamengo. Só as passagens de ida estavam garantidas – as de volta dependiam dos pastéis que ela vendia pelo clube, enquanto seu menino corria atrás da bola.
Por um triz, ele não foi dispensado, mas vingou. Dentro da bula do esporte profissional em país periférico, Adriano foi vendido aos 19 anos para a Internazionale de Milão, onde rapidamente se cristalizou como assombro de força, técnica e vocação para marcar gols. Bem ao gosto dos italianos, foi rebatizado Imperador.
Titular da seleção na Copa de 2006, milionário num piscar de olhos, morava em uma casa de sonho, na cidade que à época estava entre os epicentros europeus do futebol. Tinha o mundo dos ricos a seus pés. Mas a felicidade, por vezes, se esconde em cenários heterodoxos.
Os protocolos do esporte de alto rendimento foram se transformando em tortura para o Imperador. O assédio da imprensa, as exigências do clube e da seleção, o eterno recomeço a cada rodada, cada temporada… Com a passagem do tempo, vai tudo perdendo o sentido – mas a comunidade do futebol ignora tais dilemas, viciada em exigir mais, além de qualquer limite.
O cotidiano de um jogador profissional está longe de ser um idílio. A montanha de dinheiro que uns poucos (muito poucos) ganham tenta compensar a odisseia de pressão, dor física, solidão e desumanização que acompanha os atletas desde o fim da infância. Os boleiros são trabalhadores precoces; encaram ainda crianças, com 9, 10 anos, desafios que assustariam muitos adultos. Atravessam a adolescência na luta para chegar ao profissionalismo, até se tornar adultos neuróticos, atravessados por mágoas e frustrações.
Por tudo isso (e muito mais), Adriano disse não. Virou as costas ao futebol europeu e voltou a seu Flamengo para ser campeão brasileiro em 2009. Ajudou a consolidar o grito “Festa na favela”, que a Nação Rubro-Negra adotou nos momentos de alegria na arquibancada. Assistir ao camisa 10 favelado marcar gols de todo jeito e comemorar com os seus no estádio mítico transformou-se numa apoteose em preto e vermelho.
Mas o racismo é oponente invencível. Adriano continuou sendo perseguido por sua escolha pela favela, até se desenhar o beco sem saída do preconceito brasileiro. Ele era questionado por gostar da Vila Cruzeiro – e criticado pelo modo de vida nas mansões da Barra da Tijuca, onde passou a morar. E, aos precoces 34 anos, o Imperador desistiu do futebol.
Escolheu, na verdade, ser feliz. Renunciou ao esporte profissional, exausto dos inúmeros protocolos a que precisava se submeter. “Sim, talvez eu tenha desistido de milhões. Mas quanto vale a sua paz de espírito? Quanto você pagaria para ter de volta a sua essência?”, questionou, campeão de sensatez, em depoimento ao Players’ Tribune Brasil. “Adriano não sumiu nas favelas. Ele apenas voltou pra casa”, traduz o craque das escolhas, explicando seu golaço existencial.
A trajetória dele está agora no documentário “Adriano Imperador”, no Paramount+. Os três episódios narram os dramas familiares, a dureza do início, a violência sempre à espreita, o sucesso retumbante nos campos, a eterna busca pelo amor da família e dos amigos – e da favela.
Historinha que a produção não conta: nos tempos em que pagamentos eletrônicos não estavam disseminados como hoje, Adriano pedia aos parceiros para, na sexta-feira, sacar o dinheiro para o fim de semana. Entregava cartão e senha sem neuroses. Um assessor, certa vez, notou que alguns amigos não entregavam tudo que tiravam do caixa e embolsavam um pedaço. “Eu sei”, respondeu o Imperador, ao ser avisado. “Deixa. Tenho mais do que suficiente para mim, e eles ficam alegres”. Não tem mesmo como a elite racista do Brasil decifrar isso.
Seja feliz, Imperador. E obrigado.