O Pastor de Traíras

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Por Marco Aurélio Vasconcellos, cantor, compositor, poeta

O homem chega e já desfaz a natureza. Tira a gente, põe represa, diz que tudo vai mudar (Trecho de “Sobradinho”, música de Sá e Guarabira)




O velho Ambrósio quase perdeu a fala quando o pessoal do governo chegou lá naqueles confins, falando em indenização. Não entendia o motivo de tudo aquilo. Por que tinha de sair de sua chacrinha, que já fora de seu pai e, antes disso, de seu avô? Ali estava tudo o que possuía. A história de seus antepassados e a sua própria estavam encravadas naquela terra.

A área não era grande, mas havia a rocinha de milho e mandioca, arada com sacrifício, no ir e vir do boi de tração. “⎯ Eia, Catarina! Volta, Catarina! Entra na verga!” O aguilhão pinicando, de comparsa com a
voz de comando.

No fundo da chácara, numa baixada, não longe da casa, uma vertente buena alimentava o açudezito bordado de aguapés. E tinha, também, o arvoredo de sombra e fruta: laranjeiras de todo o tipo, pêssego, maçã, pêra, abacate, tudo produzindo. De vergar galho e amargar inveja.

Agora, vinham-lhe com aquela estória de represa, inundação, turbinas, energia elétrica… Pra que, santo Deus? O pequeno açude, tapado de traíras, seria engolido pela água grande da tal barragem. Êta trairama macanuda! Até dera nome pra algumas delas, suas velhas amigas. Reconhecia-as de longe, cortando a água límpida, a perseguir lambaris. Eram os seus afetos ali naquelas lonjuras cercadas de
solidão.

Mas o progresso teimava em querer cambiar sua vida… Por acaso, precisava de luz elétrica? O lampião a querosene era mais do que suficiente, monologava o velho com seus botões.

Na última vez que aquela gente de fala mansa havia estado ali, disseram-lhe que tinha de sair da terra, pois as águas da represa iriam inundar tudo. O dinheiro da indenização viria logo, garantiram.


Sentado na soleira da porta da casa de adobe, Ambrósio roncava a cuia, pensando no seu infortúnio. Um dia, os filhos vieram da cidade, na esperança de convencê-lo a ir morar com eles.

Fincara pé. Não queria sair dali. Detestava a vida no meio do povo. Tinha prazer era de estar na sua terrinha, apreciando os perfumes da natureza, as noites estreladas, o colorido dos crepúsculos, o canto dos pássaros e das cigarras e os sons mágicos do silêncio.

Os filhos acreditavam que, por certo, concluída a barragem, fechadas as comportas e iniciada a inundação, o velho não teria outra saída. Até já lhe haviam preparado um catre no quartinho dos fundos da casa, na vila citadina.

Mas Ambrósio foi ficando, a ruminar seus pesares. Cuidava do roçado,, do pomar e se deleitava com suas traíras. O tempo voou. O velho procurando afastar pra longe o momento que tanto o amargurava. Por fim, ele veio. Os filhos e o pessoal do governo ainda tentaram levá-lo pra cidade. Ambrósio resistiu e ficou.


A barragem nasceu e as águas cresceram. Todos pensavam que o velho, mais dia menos dia, daria com os costados na cidade. Qual nada. Ele ensimesmou-se e ficou esperando sua hora.

Foi num dia de inverno, no romper da alvorada. Uma névoa densa pairava sobre o açude das traíras. Ambrósio percebeu que as águas já circundavam sua chacrinha. Teve um calafrio. Quis balbuciar alguma coisa, mas lhe saiu apenas um som gutural. Com os olhos marejados, preparou o mate e sentou-se num banco baixo, bem em frente da casa. Ficou à espera, na solidão do amargo. Logo, a água
grande engoliria o seu açude e tudo mais.


A inundação lhe atingiu as canelas, mas não arredou pé. Quando a massa líquida o envolveu, conseguiu manter a calma, apesar do frio insuportável. Teve, até, a sensação de que as traíras se aconchegavam para não abandoná-lo. E a derradeira imagem que lhe passou no cérebro foi a de que era um enorme peixe
dourado, a pastorejar suas amadas naquela imensidão de água, frio e bruma.

Foto: Washington Araújo

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