Por Ludmila Frateschi no Blog da Boi Tempo –
Neste momento de aguda contradição entre sociedade civil e Estado, em que voltamos a sentir o sabor das medidas provisórias e dos projetos de lei “feitos e votados às pressas” convidei a psicanalista Ludmila Frateschi para assumir, nesta semana, minha coluna na Boitempo. Endossamos, desta maneira o movimento #agoraéquesãoelas. Resposta coletiva por meio da qual colunistas cedem sua palavra e seu espaço para mulheres se colocarem de viva voz acerca do projeto de lei obsceno, engendrado por Eduardo Cunha, que pretende dificultar os meios e as condições para a interrupção da gravidez, mesmo nos casos especiais sancionados pela lei, como má formação e violência sexual. Ou seja, apenas alguém que jamais escutou o sofrimento de uma mãe que se vê obrigada a conviver com um filho que é, ao mesmo tempo, amado como filho, mas também lembrança e testemunha permanente de um estupro, poderia pensar em tamanha estupidez. A covardia burocrática que se esconde por trás de tal gesto de síndico, que se vale de manobras técnicas para criar tais dificuldades é típica da estupidez que não ousa dizer seu nome. Se isso é ser cristão eu me pergunto: onde estão os adoradores do diabo?
— Christian Ingo Lenz Dunker
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O PL 5069/2013 e suas Distorções
Um dos principais estopins para a movimentação das mulheres nas últimas semanas (que inclui as passeatas de mulheres em várias cidades do Brasil, a campanha on line #meuprimeiroassedio, do Think Olga, e o movimento no qual se insere este texto, #AgoraÉQueSãoElas) foi a aprovação, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ), do Projeto de Lei 5069/2013, que agora será encaminhado ao plenário. O PL sugere alterações à lei original que criminaliza o aborto, de 1940, e precisa ainda ser escrutinado, para que possa ser combatido com a força necessária.
Escolherei aqui dois pontos para discussão: o primeiro diz respeito ao argumento que fundamenta o PL, no texto de autoria do Deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) encaminhado ao CCJ. Como seria de se esperar de tal Deputado, ela propõe um enrijecimento ainda maior da Lei existente, tornando crime “induzir ou instigar a gestante a usar substância ou objeto abortivo, instruir ou orientar gestante sobre como praticar aborto ou prestar-lhe qualquer auxílio para que o pratique, ainda mais sob o pretexto da redução de danos”. Prevê penas maiores para profissionais de saúde e maiores ainda em caso de a mulher ser menor de idade, ainda que acompanhada de seus responsáveis. O resultado prático, é possível prever, será o de inibir os profissionais de saúde a darem informação sobre o aborto, mesmo nos casos em que ele já é previsto em lei, como o de estupro. Como vários grupos já defendem que a pílula do dia seguinte também pode ser vista como um meio abortivo, abre precedentes para que a informação também sobre como evitar uma gravidez no dia seguinte de uma relação seja omitida (mesmo que essa relação seja um estupro).
O Deputado argumenta, no texto que acompanha a emenda, que a tentativa de legalizar o aborto é um movimento dos países capitalistas desenvolvidos (em especial os Estados Unidos) de controle populacional forçado. Rebate antecipadamente os argumentos que valorizam a autonomia da mulher sobre seus direitos sexuais e reprodutivos, bem como os que preconizam a redução de danos decorrentes de abortos ilegais, dizendo que são apenas uma estratégia para se obter o controle populacional, usada para “enganar” os movimentos feministas no mundo inteiro ao longo de décadas. O texto, de caráter bastante ideológico, deixa pouco claro o que a sociedade ganha com a Lei. Deixa bastante claro, no entanto, como as mulheres são vistas pelo Deputado: de forma infantilizada, como se pudessem ser levadas a abortar sem nenhum senso crítico, como são manipuláveis, frágeis e inocentes as feministas, seduzidas pelas organizações internacionais imperialistas! É como se as mulheres não pudessem ter autonomia alguma, como se não fossem capazes. O texto é discriminatório em si, e por isso criminoso.
O segundo ponto que gostaria de discutir é a adição de uma cláusula de consciência, de autoria do Deputado Evandro Gussi, do PV. De acordo com tal cláusula, qualquer profissional de saúde pode se recusar a dar à paciente do sistema de saúde qualquer substância ou meio que “considere abortivo”, de acordo com seus princípios morais. Pergunto-me: para que mesmo as leis são feitas? Todos nós temos desejos, princípios e limites. Mas não deveria ser papel do Estado Democrático garantir condições para que todos tenham acesso igual a seus direitos? Se o aborto é legal em caso de estupro, ele não deveria estar garantido nos serviços públicos de saúde sem maiores transtornos, tal e qual uma transfusão de sangue? Não me recordo de ouvir que em nenhum lugar do mundo um agente público (vejam bem, público) de saúde tivesse seu direito garantido de recusar-se a fazer uma transfusão de sangue em alguém por motivos religiosos!
Mas há ainda outra questão. A Lei atual não serve apenas às mulheres, ela também protege os agentes de saúde. Conto aqui uma experiência pessoal. Há muitos anos atrás, atendi como psicóloga a mulheres vítimas de violência sexual na Casa de Saúde da Mulher, ligada ao Hospital São Paulo. Lembro-me bem de quão doloridas e trágicas eram as histórias de mulheres machucadas, forçadas, feitas grávidas, às vezes por desconhecidos com armas, às vezes por pessoas próximas, às vezes pelo próprio pai. Me lembro de médicos, enfermeiros e agentes de saúde que não acreditavam em suas histórias (provavelmente porque elas eram intoleráveis mesmo ao seu psiquismo) e as questionavam violentamente, esquecendo-se de que ali havia um ser humano em profundo sofrimento. Nessa hora, ter a lei a favor das mulheres ajudava muito – era possível lembrar o colega de seu papel e até trocar o atendente responsável se fosse necessário, o que tinha um duplo efeito: fazer com que a mulher compreendesse que sua história era sim real e traumática e fazer com que os profissionais enlouquecidos com a brutalidade da situação fossem barrados, tendo que se confrontar com sua própria loucura e seus próprios medos. Já era difícil, mas a lei se fazia presente, garantindo um padrão mínimo de civilização que possibilitava a convivência sem o aniquilamento do outro.
O PL 5069/2013, o Deputado Eduardo Cunha e o Deputado Evandro Gussi vão no sentido oposto. Desqualificam as mulheres que por anos batalham por seus direitos sexuais e reprodutivos e para que morram menos. Destroem mecanismos que auxiliam a convivência dos direitos, fazendo um direito totalitário (o de um indivíduo em seu papel de agente público de saúde agir de acordo com princípios morais pessoais) se valer sobre um direito fundamental (o direito à vida e à autonomia do próprio corpo).
Mas nós, mulheres, vamos juntar as nossas vozes como juntamos nas passeatas. Ocupar todo o espaço possível, cedido, tomado ou conquistado, para curtir, celebrar e contemplar a força que temos juntas, comunitariamente, por uma bandeira única e inflexível: meu corpo, minha escolha, e a lei não pode me aniquilar.
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Ludmila Frateschi, Psicanalista, em consultório particular e no Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do HC/FMUSP. Ligada ao sofrimento decorrente de abusos aos Direitos Humanos, trabalhou como psicóloga na Casa de Saúde da Mulher do Hospital São Paulo (UNIFESP).