“O policial mirou no meu rosto, atirou e debochou de mim”: o relato da garota cega por uma bala de borracha

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Compartilhado de El País – 

Jovem de 16 anos foi atingida na entrada de um baile funk da periferia de São Paulo, na madrugada de domingo

A estudante Gabriella Talhaferro, 16 anos, que ficou cega após disparo da PM
A estudante Gabriella Talhaferro, 16 anos, que ficou cega após disparo da PMDANIEL ARROYO (PONTE)

“Eles debocharam de mim enquanto eu sangrava, não me prestaram socorro.” Essa é a lembrança mais viva na memória da estudante Gabriella Talhaferro, 16 anos, após ficar cega do olho esquerdo. A causa? Uma bala de borracha disparada por um policial militar do 28º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano durante a dispersão a um baile funk na região de Guaianases, no extremo leste da cidade de São Paulo, na madrugada de domingo, dia 10 de novembro.

Gabriella e sua mãe, Kelly Talhaferro, receberem a reportagem da Ponte na cobertura do apartamento dúplex em que moram, no bairro Vila Virgínia, em Itaquaquecetuba, cidade localizada na Grande São Paulo. A força da menina, que ainda tenta entender o que aconteceu, contrasta com a de sua mãe, que, durante a entrevista, se emocionou por diversas vezes.

A jovem estudante do primeiro ano do Ensino Médio agora não pretende mais voltar para a escola neste ano. Ela contou que era a sua segunda vez naquele baile e que saiu de casa muito contente. A ideia era se encontrar com mais 15 amigos e seguirem em trem da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) da cidade onde moram para o Baile do Beira Rio, como é conhecida a festa de rua que reúne centenas de jovens nas madrugadas de sábado para domingo. Os grupos são vindos dos mais diferentes bairros do lado leste da capital e de cidades na região metropolitana.




A menina vaidosa agora precisa fazer curativos no olho de hora em hora. Gabriella relembra que, no local do baile, foram avisados de que não seria realizado o tradicional evento, já que a PM estava ali desde as primeiras horas da tarde impedindo sua realização. A rua em que a reunião acontece que fica a poucos metros da estação de trem de Guaianases, também administrada pela CPTM, do 44º DP (Guaianases) e da sede da 1ª Companhia do 28º Batalhão.

Segundo Gabriella, mesmo sem o baile ela e seus amigos decidiram permanecer no local pois, já era meia-noite e não teriam como voltar para Itaquaquecetuba, já que o trem havia parado de circular. Não há transporte coletivo nesse horário. A menina então conta que, por volta das 2 horas, policiais militares passaram a dispersar os pequenos grupos que ainda permaneciam no local com bombas e exigindo que deixassem a região.

“Nessa hora fomos até a estação para tentar ir embora, mas os guardas de lá não deixaram a gente ficar, então voltamos”, lembra. Após voltar, a menina conta que ela e seus amigos decidiram ficar em frente a uma adega, na tentativa de fazer com que os policiais que continuavam no local não confrontassem o grupo. Foi nesse momento que o disparo aconteceu.

“Eu estava em frente a adega quando tomei o tiro. Eles vieram na viatura, pararam na rua e quando virei o rosto o policial atirou. Estavam bem na minha frente. Ele estava dentro da viatura. Nem desceu. Mirou no meu rosto e atirou”, conta a garota.

Segundo Gabriella, os quatro PMs que estavam em um carro da corporação de porte pequeno teriam então seguido mais adiante, onde pararam. É desse momento que ela não se esquece. Ensanguentada, com muitas dores e vomitado, os PMs teriam recusado atendimento médico, inclusive com um deles rindo o tempo todo da situação.

“Pedimos para eles ligarem para o socorro e eles disseram ‘se vira’. Um deles ainda me disse ‘vá se foder’, enquanto o outro dava risada. Sou capaz de reconhecer todos: o que atirou em mim, o que me xingou e o que dava risada. Não sai da minha cabeça”, disse, em um dos poucos momentos que troca sua voz doce e fina, típica de uma menina de sua idade, por  um timbre mais forte, de revolta.

O socorro da menina foi providenciando por pessoas que estavam na própria adega, já que os policiais se recusaram a prestar socorro e um pouco antes de ser baleada ela havia se perdido de amigos e seu celular estava descarregado. O dono da adega ligou para um motorista da Uber, que a socorreu até a UPA de Itaquera. Como a unidade não tinha um médico especializado para o caso, a jovem foi conduzida até um hospital público em Ermerlino Matarazzo, outro centro hospitalar em que não pôde ser atendida.

Mãe troca curativo no olho de Gabriella
Mãe troca curativo no olho de GabriellaDANIEL ARROYO (PONTE)

Gabriella conta que só recebeu socorro por volta das 6 horas do domingo, quando chegou ao Hospital São Paulo, na Vila Mariana, na zona sul, distante 30 quilômetros de onde foi baleada. No local, segundo a mãe de Gabriella, uma cirurgia de emergência foi realizada, mas constatada a perda da visão do olho esquerdo.

“Agora que está em casa precisamos fazer a troca do curativo e pingar um colírio de hora em hora. Já um outro colírio é aplicado a cada quatro horas. Esse é mais doloroso e incômodo para minha filha”, conta a manicure autônoma, que disse ter gasto R$ 200 com medicamentos até aqui. A menina ainda deve voltar nesta quinta-feira ao hospital São Paulo para dar andamento no tratamento, que pode resultar na remoção do globo ocular.

“O que me dói é que não estavam em guerra contra bandidos. São adolescentes. Pesquisei e vi que minha filha não foi a única a ser baleada nessas condições. E todos os baleados foram no olho esquerdo e nunca um culpado foi punido”, completa.

Conforme publicado pela Ponte, documentos secretos da PM descrevem as regras para o uso de bala de borracha por integrantes da tropa. Elas só devem ser usadas em casos restritos, contra um “agressor ativo, certo e específico”, e nunca disparada aleatoriamente contra uma multidão. A regra deixa claro que é um “erro” usar bala de borracha para dispersar manifestantes, que o tiro deve ser dado a 20 metros do alvo, “que deverá ser preciso” e “direcionado para os membros inferiores do agressor ativo”.

Gabriella afirma que mesmo gostando muito do som e do passeio com os amigos, nunca mais pisará em um baile funk e que agora entende a revolta de algumas pessoas com a polícia. “Fizeram isso porque são ruins. Fazem isso com qualquer pessoa. Eu achava normal as notícias de polícia em baile funk até acontecer comigo. Quando eu ouvia relatos, a primeira coisa que eu dizia era que a pessoa não tinha que estar lá. Eu estava e não estava fazendo nada”.

Gabriella diz não ter planos para o futuro, mas que não pensa em voltar a cursar o final do primeiro ano do Ensino Médio enquanto não terminar o tratamento do olho lesionado. “A ficha ainda não caiu. Eu achava que minha vida tinha acabado, estava me culpando muito. Mas não tenho culpa. Eu não pedi para isso acontecer. Saí de casa toda feliz. Minha vida não pode acabar por causa disso.”

Enquanto conversava com a reportagem, Gabriella e sua mãe estavam acompanhadas do amigo da menina, o modelo Gabriel Bueno, de 22 anos. O jovem conta que foi convidado pela estudante para ir ao baile, mas recusou o convite por ter sofrido na pele violência policial numa festa há dois anos. “Fui baleado na perna no baile da Pantanal”, se referindo à região no Itaim Paulista, também na zona leste, e aponta para a cicatriz que tem após o disparo de bala de borracha.

“Minha irmã de 6 anos só chora. Ela olha para minha mãe, chora e diz que a ‘polícia não pode fazer isso, não’. Eu nunca tive nada contra a polícia, até cumprimentava. Agora entendo porque as pessoas tem tanta raiva da polícia”, conta a garota. O sentimento de dor e revolta é compartilhado pela mãe. “Ver minha filha desse jeito… Será que esses PMs já fizeram algo que honrou seu batalhão para desonrar o pelotão dessa forma?”, finaliza Kelly.

Para o ativista dos direitos humanos, Darlan Mendes, que tem prestado apoio à família e atua junto à comunidade do Funk, não adianta fazer proibição dos bailes se o governo não dá uma solução. “É a opção de lazer noturna, nossa juventude realmente gosta de curtir a vida, sair e se divertir. Não dá para aguentar mais essa política de que tudo se resolve na bomba e na paulada”, critica. “Temos que reforçar que é importante denunciar não só casos como o da Gabriella, mas também agressões verbais e físicas. Muitos policiais usam golpes na costela pra não deixar marcas, obrigam a sentar nas mãos entrelaçadas, ou invadem a privacidade em abordagem, obrigando a pessoa a colocar a senha no celular e deixar ver suas redes sociais e fotos”, continua.

Procurado, o ouvidor das polícias de São Paulo, Benedito Mariano, afirmou que aguarda mãe e filha para serem ouvidas e registrarem a denúncia. Antes, porém, elas vão elaborar o boletim de ocorrência no 44º DP, que fica a poucos passos do baile funk, e colado parede com parede ao batalhão dos policiais autores do disparo.

Em nota, a SSP (Secretaria da Segurança Pública), comandada pelo general João Camilo Pires de Campos nesta gestão do governador paulista João Doria (PSDB) informou que “a Polícia Militar esclarece que, em 9 de novembro, policiais do 28º BPM/M realizavam a operação ‘Noite Tranquila’, com o objetivo coibir ocorrências de perturbação de sossego, quando foi necessário o uso de técnicas de controle de distúrbios para conter a multidão”, garante a pasta.

“Até o término da ocorrência não havia relato de pessoas feridas, mas, ao tomar conhecimento do caso citado pela reportagem, o Comando do 28º Batalhão Metropolitano instaurou procedimento apuratório para investigar as circunstâncias. Até o momento, a Polícia Civil não localizou registro de boletim de ocorrência sobre o fato”, prossegue a nota oficial.

Esta reportagem foi publicada originalmente no site Ponte Jornalismo em 13 de novembro de 2019.

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