Por Joaquim Ernesto Palhares em Carta Capital –
Durante três dias, o povo brasileiro arrombou as trancas, as blindagens e interditos para dizer de forma direta ou metafórica a mesma coisa: ‘ninguém aguenta mais’
Este foi o recado contundente de uma participação popular massiva, espontânea e inédita registrada no Carnaval 2018.
Nas ruas, nos blocos, nos desfiles e até mesmo no aeroporto Santos Dumont, no Rio, milhares de pessoas expressaram a indignação e a recusa à perda de direitos e de esperança imposta à nação desde o golpe de 2016.
Não sem motivo.
O resultado do desmonte salta aos olhos: o país tomado de assalto pelo conservadorismo tornou-se um pasto de engorda do caos.
Um dado resume todos os demais: o investimento em infraestrutura em 2017 limitou-se a 1,4% do PIB, montante inferior ao gasto necessário para compensar a depreciação dos equipamentos existentes.
O resultado emerge em fotos e fatos que dão linearidade à expressão ‘indo para o brejo’.
Passarelas, pontes e viadutos desabam, como se viu recentemente em Brasília, quando 30 metros do elevado da Galeria dos Estados ruiu em estrondosa metáfora de um sucateamento estrutural e político.
Entre os grandes Estados quebrados, o Rio de Janeiro é o paradigma assustador de um Brasil em ponto pequeno.
A cidade vive um quadro de descalabro que beira a perda de controle; não há recursos para o essencial, o urgente ou o emergencial.
A pane avançou da saúde para o funcionalismo e explodiu na insegurança pública.
As prioridades diante do colapso evidenciam o despreparo para enfrenta-lo dentro da estrutura de poder atual.
Paga-se a folha salarial de um judiciário que perdeu a credibilidade e o juízo, por exemplo, enquanto escolas e hospitais afundam.
A violência é senhora ao lado do escárnio. Os pobres, o alvo mais exposto dessa aquarela de cores sombrias, que nada fica a dever à sangria derramada nos países marcados pela guerra civil.
Hoje no Brasil a violência já mata mais do que na guerra síria.
Morrem policiais também, vítimas de uma corporação que traduz em seu despreparo a relação de descaso e incompetência do Estado com os segmentos mais fragilizados da população.
Nesse caldo de cultura de medo e conflagração manipula-se o sentimento de desamparo a classe média para legitimar o genocídio praticado especialmente contra a juventude pobre, preta e periférica.
Instrumentalizado pela mídia, por juízes oriundos da elite senhorial e por políticos de extrema direita, ordenha-se desse quadro o preconceito de classe. que alimenta o ódio ao pobre, às suas reivindicações, à sua presença, aos seus direitos, aos partidos e lideranças que os vocalizam.
Como supor que disse apartheid em marcha batida resultará uma nação?
O desfile da escola de São Cristovão, a ‘Paraíso do Tuiuti’, liberou esse grito que inquieta o espírito da nação e pulsa no cotidiano de cada família assalariada.
“Não sou escravo de nenhum senhor”, desabafa o samba-enredo que questiona oportunamente: “Meu Deus, Meu Deus, está extinta a escravidão?”.
A opressão que perdura e se aprofunda em ‘reformas’ e ‘ajustes’ tão ou mais desumanos que a versão escravocrata que se enraizou em 388 anos de vigência aqui, explodiu assim de forma demolidora de onde menos se esperava: no desfile de uma escola de samba modesta da periferia do Rio de Janeiro.
Tudo muito sugestivo do grau de insatisfação popular aqui mencionado.
Igualmente expressiva foi a via sacra da ‘Paraíso de Tuiuti’ para romper as blindagens e interditos que cercam o pacto golpista no país.
A escola levantou a Marquês de Sapucaí no domingo, enfrentou o boicote constrangedor da cobertura ao vivo da Globo com intensa repercussão nas redes sociais e se impôs à emissora obrigando-a, dois dias depois, finalmente, a dar espaço ao enredo-denúncia do golpe no JN, na terça-feira à noite.
O conjunto injetou coragem ao jurado que concedeu o vice-campeonato a ‘Tuiuti’ por uma diferença de apenas 1 décimo em relação à campeã, Beija-Flor. (confira a íntegra do desfile).
Desassombro, cerco, resistência e vitória popular.
Esse enredo de carnaval encerra lições à luta democrática e progressista nos poucos meses que nos separam da disputa presidencial de outubro.
Uma delas, emblemática, mostra a importância de se expor claramente o conflito social aguçado no país desde o golpe de 2016.
Foi o que fez o carnavalesco da Tuiuti, ao traduzir em gigantescas mãos manipuladoras a participação da elite, da mídia e do dinheiro na mobilização da classe média para legitimar o golpe.
Um segundo mas não menos notável ensinamento remete à importância de se fortalecer a comunicação progressista para romper o monopólio da mídia conservadora na agenda nacional.
Foi graças à intensa denúncia das redes, sites e blogs progressistas que a sabotagem da Globo ao desfile da ‘Tuiuti’ foi revertida.
Sem ilusões, porém. Esse embate não se resolveu na Marquês de Sapucaí e tampouco se esgotará no escrutínio de outubro.
É necessário arregimentar forças, recursos e organização para uma longa e dolorosa resistência. Seja qual for o resultado do pleito.
A contraposição de interesses subiu o degrau dos confrontos no país.
A elite brasileira abraçou um projeto no qual não cabe a imensa maioria da população, rechaçando uma trajetória incremental de inclusão da qual Lula se tornou o principal negociador e símbolo.
Ela nunca o perdoará por ter denunciado a existência de 38 milhões de famintos na oitava maior economia do planeta e ter acabado com a fome.
Tampouco por gerar 22 milhões de empregos com direitos plenos e não quebrar a economia das empresas — ao contrário, nunca lucraram tanto.
Assim como jamais perdoará Dilma por ter baixado os juros reais a 1,5% (hoje, em plena recessão golpista, está em 2,5%), escancarando o grande sumidouro rentista que esteriliza o equivalente a 6% do PIB para servir à riqueza privada nas tetas da dívida pública.
Entre outros pontos, a clareza programática requerida na disputa de outubro deve incluir a auditoria dessa boca pantagruélica. Feita na Grécia, descobriu-se que 50% dos títulos em mãos do mercado resultavam de artifícios contábeis ilegítimos e fraudulentos.
O pornográfico lucro do maior banco privado brasileiro, o Itaú, analisado por Jefferson Miola em “O lucro indecente do Itaú e a verdadeira corrupção”, sinaliza esse dreno. Acionistas engordam nos piquetes fartos da renda fixa que acumula nas carteiras da banca o investimentos que falta nos serviços essenciais à população.
A volúpia rentista não é um atributo exclusivamente tropical, todavia.
Sua dinâmica é inerente a atual etapa do capitalismo, sob a supremacia das finanças desreguladas.
A reportagem “O mundo já esqueceu as lições de 2008”, publicada em Carta Maior, aponta a nova bolha em formação nos USA na esteira dessa lógica.
A ameaça chega em má hora.
No estouro anterior, em 2008, o Brasil dispunha de uma economia mais sólido.
Crescíamos, havia efetivamente um presidente da República comprometido em defender interesses da nação, não os do dinheiro.
Um novo e persistente ciclo de turbulência agora arrastaria o país a um torvelinho imponderável.
Contrapesos a essa fatalidade não podem faltar no projeto progressista para a a repactuação do desenvolvimento brasileiro.
Confira esse debate no artigo “Restaurar o Estado é preciso” de Maria da Conceição Tavares e “O lawfare neoliberal e o sacríficio de Lula” de Carol Proner.
A farra e o privilégio das elites terá que acabar para que a sociedade disponha de mais recursos para investimento com efeito fiscal nulo, sem elevar a dívida, taxando-se mais os ricos, poupando-se a classe média e atendendo ao clamor ascendente – aqui e no mundo todo– pela universalização de serviços públicos dignos.
Pequena em número, a elite brasileira tornou-se um estorvo a essa agenda.
A ganância concentra aqui uma fatia da renda nacional inédita no planeta no extrato do 1% mais rico, como já denunciou o economista Thomas Piketty. Lembremos: seis brasileiros detêm a mesma riqueza que os 100 milhões mais pobres.
O conjunto tornou-se insuportavelmente disfuncional com a ideia de sociedade, que pressupõe a existência de laços compartilhados de valores e direitos.
Sob um neoliberalismo agônico, mas sem forças de ruptura que o superem, a desigualdade cresce em todo o mundo, como se não houvesse amanhã. (leia “A ascensão dramática da desigualdade de riqueza”). Nos Estados Unidos, dados de 2017, 41 milhões vivem oficialmente na pobreza; destes, nove milhões têm renda zero, 553 mil não têm onde morar .
Sem a criação de contrapesos de participação e organização popular essa espiral não arrefecerá.
Ao contrário: o impacto fulminante do golpe no Brasil aponta em sentido inverso.
Em reportagem de outubro de 2017, com dados do Banco Mundial, Carta Maior registrava a ação demolidora das elites no metabolismo social brasileiro: 28,6 milhões saíram da pobreza entre 2004 e 2014; mas em 2016, entre 2,5 milhões a 3,6 milhões foram devolvidos a ela, com menos de R$ 140 por mês (leia aqui). Detalhe pedagógico: São Paulo, governada pelo tucanato há décadas, desponta desde 2013 como o Estado onde a miséria mais cresce no Brasil. (confira aqui).
É óbvio que um sistema econômico com esse grau de perversidade não subsiste sem a lavagem cerebral diuturna assegurada pela Rede Globo e seus satélites.
Trata-se de uma usina de legitimação do robinhoodismo invertido que tem no Brasil uma referência mundial na arte de tirar dos pobres para dar aos ricos.
A Lava Jato era o ingrediente que faltava para lubrificar a engrenagem demolidora, mastigando líderes e organizações da resistência popular nos dentes do descrédito e da perseguição.
A missão atribuída a Curitiba é clara e audaciosa: enterrar por décadas a possibilidade de um novo governo popular no Brasil.
A manipulação do preconceito da classe média é parte essencial dessa barragem.
Sem a adesão de uma parte dos extratos médios, projetos como os de Getúlio ou o de Lula tornam-se adicionalmente fragilizados do ponto de vista da sustentação eleitoral e política (confira o artigo de Flávio Aguiar sobre o documentário “O Processo” que trata desse componente do golpe).
O legado social dos governos populares, porém, ainda que sabotados e limitados, continua a pulsar no imaginário brasileiro tendo sido o seu oposto, a restauração neoliberal, rejeitado quatro vezes sucessivas nas urnas desde 2002.
Tal polarização ilustra o grau de arbítrio necessário – e de força em uso pela aliança da mídia com a escória, o dinheiro e o judiciário– para extirpar definitivamente a voz de Lula do jogo eleitoral e da vida pública nacional.
Não será fácil, porém. É o que mostra Saul Leblon no editorial “Como calar Lula se a prisão também fala?”.
Reside nesse impasse o epicentro simbólico do confronto social e político que sinaliza grandes embates no front, antes durante e depois da votação de outubro próximo.
A transparência da contraposição de interesses no Brasil, lembra o editorial, coloca uma obrigação incontornável às candidaturas progressistas neste pleito: ‘convocar a rua assumir o comando do sonho de futuro que os coveiros da nação querem sepultar”.
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Joaquim Ernesto Palhares
Diretor da Carta Maior