O presidente comete crimes, e daí?

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Conrado Hübner Mendes, Professor de direito constitucional da USP – 

Um país não pode enfrentar uma grave crise sanitária sob liderança de um celerado

Será de Jair Bolsonaro a responsabilidade pelas mortes evitáveis da pandemia. A conduta estimulou o contágio, o discurso incentivou o desrespeito a ações sanitárias, a gestão desossou a capacidade estatal e tumultuou o ministério.




Mas quem pode cobrar a conta de alguém cuja delinquência se tolera há 30 anos?

Bolsonaro sempre sambou em cima da lotérica jurisprudência constitucional brasileira. Celebrou a ditadura, a tortura e a milícia, pediu fuzilamento e guerra civil que “mate uns 30 mil”, ameaçou mulher de estupro e festejou a morte.

O STF nunca foi capaz de discernir, na escatologia verbal e no discurso de ódio, o abuso da liberdade de expressão e da imunidade parlamentar. O Congresso não notou qualquer ofensa à ética parlamentar.

Permitiram que chegasse à Presidência por meio de campanha de desinformação financiada por caixa dois. O TSE segue o “tempo judicial” no modo aleatório. Esperemos. Continuam permitindo que o presidente banalize o crime de responsabilidade e, na pandemia, o crime comum também.

Não bastasse a dieta de apreensão cotidiana que a pandemia nos aplica, a desordem política é administrada em doses diárias de agressão à democracia. Enquanto o governo e o presidente boicotam medidas de contenção da pandemia, o pior cenário de desastre se avizinha.

Fazer justiça a Bolsonaro não pode mais se traduzir na crítica à sua ignorância, na ironia à sua carranca rude e obtusa, ou à masculinidade mal resolvida. Bolsonaro pode ser vulgar e tosco como nunca se viu na Presidência, mas, antes de qualquer coisa, comete crimes. Sobre crimes deve haver consequências jurídicas, não só eleitorais e morais.

Seus crimes de responsabilidade estão definidos na Constituição e na lei 1.079. As dezenas de atos criminosos se distribuem em três categorias: violação de direitos, ataque à autonomia institucional e ofensa à dignidade, honra e decoro do cargo.

Temos a causa de impeachment juridicamente mais sólida da história. Nomear amigo do filho para chefiar a Polícia Federal é exemplar da afronta. “E daí?”, debochou com a certeza de sua impunidade.

Seu crime comum praticado à luz do dia está definido no artigo 268 do Código Penal. É crime contra a saúde pública, com pena de detenção.

Pedidos de impeachment se avolumam na Câmara; ao procurador-geral da República chegam notícias-crime; na gaveta do TSE dorme um pedido de cassação de chapa. São caminhos legítimos e alternativos. Dependem da coragem e tirocínio das autoridades.

Segundo mandamento de prudência, não se tira presidente em uma pandemia. Outro mandamento diz que um país não pode enfrentar grave crise sanitária sob liderança de um celerado. Esse mandamento revoga o anterior. A exceção prevalece sobre a regra.

Stefan Zweig conta em suas memórias como Hitler testava uma pílula de maldade de cada vez. Esperava a reação e soltava outra dose, até que se corroessem as defesas institucionais. “Bastava Hitler pronunciar a palavra ‘paz’ para entusiasmar jornais e fazê-los esquecer de seus atos passados.” Zweig relata a dor de olhar para trás e ver que havia janelas de oportunidade para agir, que se fecharam enquanto procuravam a moderação de Hitler.

Antonio Scurati, autor de bestseller sobre a vida de Mussolini, descreve como pensadores da altura de Benedetto Croce menosprezaram a malignidade do Duce. Pensavam que era apenas um personagem mais histriônico do teatro da política. “Croce não entendeu nada sobre o fascismo quando este foi constituído.”

Ainda não atinamos a magnitude do bolsonarismo. O certo é que subestimamos. Talvez Bolsonaro seja só o começo de um processo de autocratização definitivo. Ou um acidente reversível e pedagógico, apesar do custo. A janela histórica parece ainda nos conceder uma fresta, quem sabe? Na dúvida, testar é imperativo de sobrevivência.

Não bastasse a dieta de apreensão cotidiana que a pandemia nos aplica, a desordem política é administrada em doses diárias de agressão à democracia. Enquanto o governo e o presidente boicotam medidas de contenção da pandemia, o pior cenário de desastre se avizinha.

Fazer justiça a Bolsonaro não pode mais se traduzir na crítica à sua ignorância, na ironia à sua carranca rude e obtusa, ou à masculinidade mal resolvida. Bolsonaro pode ser vulgar e tosco como nunca se viu na Presidência, mas, antes de qualquer coisa, comete crimes. Sobre crimes deve haver consequências jurídicas, não só eleitorais e morais.

Seus crimes de responsabilidade estão definidos na Constituição e na lei 1.079. As dezenas de atos criminosos se distribuem em três categorias: violação de direitos, ataque à autonomia institucional e ofensa à dignidade, honra e decoro do cargo.

Temos a causa de impeachment juridicamente mais sólida da história. Nomear amigo do filho para chefiar a Polícia Federal é exemplar da afronta. “E daí?”, debochou com a certeza de sua impunidade.

Seu crime comum praticado à luz do dia está definido no artigo 268 do Código Penal. É crime contra a saúde pública, com pena de detenção.

Pedidos de impeachment se avolumam na Câmara; ao procurador-geral da República chegam notícias-crime; na gaveta do TSE dorme um pedido de cassação de chapa. São caminhos legítimos e alternativos. Dependem da coragem e tirocínio das autoridades.

Segundo mandamento de prudência, não se tira presidente em uma pandemia. Outro mandamento diz que um país não pode enfrentar grave crise sanitária sob liderança de um celerado. Esse mandamento revoga o anterior. A exceção prevalece sobre a regra.

Stefan Zweig conta em suas memórias como Hitler testava uma pílula de maldade de cada vez. Esperava a reação e soltava outra dose, até que se corroessem as defesas institucionais. “Bastava Hitler pronunciar a palavra ‘paz’ para entusiasmar jornais e fazê-los esquecer de seus atos passados.” Zweig relata a dor de olhar para trás e ver que havia janelas de oportunidade para agir, que se fecharam enquanto procuravam a moderação de Hitler.

Antonio Scurati, autor de bestseller sobre a vida de Mussolini, descreve como pensadores da altura de Benedetto Croce menosprezaram a malignidade do Duce. Pensavam que era apenas um personagem mais histriônico do teatro da política. “Croce não entendeu nada sobre o fascismo quando este foi constituído.”

Ainda não atinamos a magnitude do bolsonarismo. O certo é que subestimamos. Talvez Bolsonaro seja só o começo de um processo de autocratização definitivo. Ou um acidente reversível e pedagógico, apesar do custo. A janela histórica parece ainda nos conceder uma fresta, quem sabe? Na dúvida, testar é imperativo de sobrevivência.

Conrado Hübner Mendes
Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.

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