O projeto-chacina das infâncias negras no Brasil

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Estamos todos desolados e apavorados com a máquina de matar da necropolítica que impera no país

Por Andréia Coutinho Louback, compartilhado de Projeto Colabora




Poucas experiências podem ser mais tão cruéis quanto presenciar o enterro de uma criança. Se você me responder que, na verdade, depende da causa do óbito, eu seguiria com a minha premissa. Vidas interrompidas pelo estado, talvez, seja ainda mais fatal, uma vez que o gatilho da morte veio de quem supostamente deveria nos proteger. Contudo, não foi o desfecho que aconteceu com o menino Thiago Menezes Flausino, na Cidade de Deus (RJ) — nem com as outras 100 crianças e adolescentes mortas por arma de fogo desde 2007, de acordo com o levantamento do Rio de Paz.

Comoção no enterro de Thiago Flausino, 13 anos, morto a tiros pela PM do Rio: projeto de chacina das infâncias negras (Foto: @rafaelhbrit / Rio de Paz)
Comoção no enterro de Thiago Flausino, 13 anos, morto a tiros pela PM do Rio: projeto de chacina das infâncias negras (Foto: @rafaelhbrit / Rio de Paz)

Thiago não era qualquer menino. Era um menino negro, favelado, pobre. Era vaidoso, jogador de futebol e tinha acabado de se batizar em uma igreja evangélica local. Pela internet circulam imagens de outras crianças que choraram a morte de uma outra criança. O mesmo fuzil que matou um corpo negro no auge dos seus 13 anos, assassinou também uma família que chora o inconsolável. Assassinou seus amigos, seus professores, seus colegas de futebol. Estamos todos desolados e apavorados com a máquina de matar da necropolítica que impera no Brasil.

Eu tenho um sobrinho, negro, na véspera de completar 15 anos em poucos dias. Assim como o Thiago, ele é cheio de sonhos ambiciosos para sua vida. Seria ele um sobrevivente do estado? A cada ano, será que é mais prudente celebrar a sobrevivência em vez de a vida em si? Uma vez que o direito de ir e vir é uma ameaça a corpos negros enquanto a cada 23 minutos um jovem preto também morre.

Existe um projeto de chacina das infâncias negras no Brasil. Organizado silenciosa e publicamente, legitimado pela política de morte do governo do Claudio Castro, por exemplo. O gatilho já está preparado, pronto pra mirar na “pretalhada”, como nos chamava Bolsonaro. O filtro é toda a paleta de cores da nossa pele, as variações dos nossos cabelos, o nosso jeito de vestir, o nosso jeito de pertencer.

Hoje, muitas mães choram e revivem seu próprio pesadelo de horror. Choram de saudade, de revolta, por um luto interminável. Choram pela injustiça de uma maternidade interrompida, ou melhor, assassinada por uma arma de fogo. Muitas perderam seus filhos e filhas em lugares “seguros”. Na sala de casa, no pátio da escola, em frente ao portão. Em poucos segundos, um disparo, um estrondo, um grito e tudo mudou. Em pranto coletivo, lacrimejam todos os dias diante de fotos antigas, ao assistirem notícias semelhantes no jornal — e a cada novo episódio, choram.

Colegas de Thiago, morto por policiais, no enterro do jovem de 13 anos: 100 crianças e adolescentes mortos por arma de fogo desde 2007 no Rio (Foto: @rafaelhbrit / Rio de Paz)
Colegas de Thiago, morto por policiais, no sepultamento do jovem de 13 anos: 100 crianças e adolescentes mortos por arma de fogo desde 2007 no Rio (Foto: @rafaelhbrit / Rio de Paz)

Somente neste ano, oito crianças tiveram suas vidas interrompidas por “bala perdida”. Nos últimos seis anos, de acordo com o relatório da plataforma Fogo Cruzado, perdemos, ao menos, 1000 vítimas por bala perdida no estado do Rio de Janeiro, de onde escrevo agora e onde perdemos o Thiago. Entre as 1000 vítimas, 229 morreram e 771 ficaram feridas.

Hoje, meu pensamento e minha oração é por todas as mães enlutadas no Brasil. A mãe de Thiago chora. A mãe de João Pedro chora. A mãe de Ágatha Felix chora. A mãe de Lorenzo chora. A mãe de Emily e Rebecca chora. A mãe de Kaylane chora. A mãe de Lohan Samuel chora. Que o luto dessas e muitas outras mães não nos deixe esquecer que das mulheres que, há anos, esperam por respostas e justiça. Dedico essa coluna à memória de todas as infâncias cruelmente interrompidas — de forma precoce e covarde — e não tiveram a chance de apenas existir.

Descanse, menino Thiago. Talvez seja difícil descansar em paz pela forma como tudo aconteceu. Mas nós, aqui, prometemos não descansar enquanto a paz, a vida digna e a justiça não forem uma realidade para os nossos.

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