O projeto vira-lata desabilita o país para os Isaquias

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Por Saul Leblon, Carta Maior – 

A ninguenzada preta, parda, favelada, periférica não cabe no olimpo dos mercados que o golpe quer impor ao Brasil. Daí a contrariedade com o êxito da Rio-2016.

Roberto Castro/ Brasil2016

Por trás do viralatismo há método  –e há teoria.




 Se vingar seu projeto de país, o Brasil acaba enquanto possibilidade de um futuro ordenado pela democracia social.

 A meta é fazer do país um frango desossado da sadia no cepo dos mercados.

 E é esse o motor de um empenho que assumiu singular intensidade  nos dias que correm.

A engrenagem envolve uma lista robusta de alvos a desabilitar.

 Desde sediar uma Olimpíada a explorar o pré-sal, dispor de universidade pública e serviço digno de saúde ou resgatar a industrialização  –são variados os temas e princípios a compor  o sacramento de uma impossibilidade que se pretende tornar  inviolável.

 O Brasil não sabe, não pode e, sobretudo, não deve mais afrontar os fundamentos de uma inabilitação essencial para o ajuste de virulência inédita, que deve ocorrer após o impeachment –sibila-se  nas entrelinhas e fora delas também.

 Dissolver qualquer coágulo de nação como se dissolve os grumos do trigo na batedeira de bolo é a bússola de um golpe que não dispõe de estratégia alguma de desenvolvimento porque é justamente isso que se almeja eliminar.

 Basta colar a inabilitação nacional aos mercados globais, esses que estrebucham sob o peso de uma desordem neoliberal irreversível.

 As hélices cortantes  serão acionadas na velocidade máxima, assim que o Senado dê a derradeira cutelada no pescoço altivo da presidenta assertiva escolhida por 54,5 milhões de brasileiros, tão  teimosos quanto em rechaçar há quatro eleições o projeto que agora quer se impor com um golpe.

 A advertência e as revogações encerram uma rígida contabilidade argentária: 70% a 80% do povaréu não cabe dentro da nação e precisa se convencer disso.

É incontida a contrariedade com a heresia levada às últimas consequências a partir da aposta feita há sete anos pelo então presidente Lula, de sediar os 31º Jogos Olímpicos na cidade do Rio de Janeiro.

 A bizarra sucessão de dezesseis dias durante os quais emergiu  uma nação normal em seus acertos e falhas, mas predominantemente hospitaleira, aguerrida, criativa, admirada e capaz, abriu uma dissonância intolerável à narrativa de país capacho, cuja única opção consistiria em dobrar a espinha para sempre.

 Garrafais e adversativas do dispositivo midiático conservador tentavam consertar o estrago nesta segunda-feira, mitigando o que deu certo para resgatar o bordão do fracasso:

 Para ficar nas manchetes de quatros exemplares do canil, no day after do evento (22/08):

 ‘Prazo, falta de foco e de base tiram o Brasil dos 10 mais’(Valor); ‘Brasil celebra sucesso dos jogos, mas não bate meta’ (Folha); ‘Brasil faz melhor campanha, mas não atinge meta’ (Estadão); ‘Mesmo com recorde de medalhas, meta do país não foi cumprida’ (O Globo).

 Não foi, não será, nunca deveria ter sido tentado.

 O colunista da Folha que encarna um almanaque de faits divers, reclama nesta 3ª feira que os dezessete dias de jogos olímpicos custaram ao Tesouro R$ 17 bilhões — R$ 1 bi ao dia, proclama. Depois de exibir a argúcia aritmética admite que metade disso foi em obras do metrô, que vieram para ficar.

 O artificioso empenho no desapreço pode ser medido pela atitude oposta de um concorrente estrangeiro na felicitação aos seus atletas.

 O jornal El País, um dos mais importantes do mundo, longe de ser de esquerda,  saúda na delegação espanhola o feito épico capaz de sacudir o brio de um país necrosado pelo austericidio que se quer ministrar aqui: ‘España cierra los Juegos de Río con 17 medallas –7 de oro, 4 de plata y 6 de bronces. Los siete títulos olímpicos coronan a una generación que no se conforma con ser segunda y se sobrepone a la crisis economica’

 Um detalhe ilustrativo: a campanha espanhola foi idêntica à do Brasil em ouros, (7 ) e ficou ligeiramente abaixo no computo total de medalhas (17, contra 19 dos brasileiros).

 Com uma vantagem singular para o épico local.

 O desempenho dos atletas anfitriões foi liderado predominantemente pela ‘ninguenzada’ de Darcy Ribeiro.

 Sim, a ninguenzada preta, cafuza, parda, favelada, sertaneja, composta de pedreiros pobres, filhos de faxineiras, moleques da periferia, vidas que já nascem remando contra a corrente, dando murro em ponta de faca, chutando pedra, rebatendo o azar até um belo dia engancharem o país no olimpo do esporte mundial.

 Cruel é a palavra para uma elite que sonega esse orgulho às crianças de uma nação carentes de heróis que as livrem do traficante da comunidade.

Senhores senadores desta República que sucedeu ao regime escravocrata mais longevo da face da terra: essa é a natureza do golpe em curso.

Inabilitar o Brasil para a igualdade é o imperativo categórico de quem se propõe a regenerar o tecido econômico e político à imagem e semelhança dos interesses que secularmente barraram a ninguenzada  no  pódio da cidadania

 Hoje, a maratona que verdadeiramente importa é fornecer aos mercados um substrato de país livre, leve e desimpedido de líderes, projetos, políticas, direitos, regulações e gastanças.

 Daí por que a conquista do ouro na modalidade em que o fracasso tido como certo trombou com o imprevisto brilho da organização deve ser esquecido.

 ‘Organização olímpica vence desorganização brasileira’, restringe a Folha sem dar chance a qualquer vínculo entre a nação e o evento irrealizável que deu certo.  

 Para que não haja recidiva, o diário sangra a teimosia no subtítulo de misericórdia: ‘O melhor da Olimpíada deveria começar agora, mas não virá’ (Folha, 22/08/2016).

 ‘Não virá’.

 O azedume reiterado em dezesseis dias de cobertura, segundo a ombudsman, gerou protestos até dos assinantes que escolheram o produto dos Frias como a sua janela para ver o país.

 Fosse mesmo para vituperar algo, seria preciso admitir que a tradição olímpica foi rompida justamente na vexatória descortesia do golpe apoiado pelo jornal, durante a cerimônia de transmissão simbólica da tocha ao Japão, sede dos jogos em 2020.

 Shinzo Abe, o premiê japonês, viajou 18,5 mil quilômetros num túnel de animação compactado em vídeo – para irromper  no Maracanã, em meio à chuva que desabava na festa de encerramento, domingo.

 Estava ali para erguer a ponte do espírito olímpico com seu homólogo brasileiro, como manda a tradição secular.

 Só que não.

Ciente das vaias estocadas no Maracanã o golpista ficou em Brasília, para onde Abe se recusou a ir, demarcando a recusa no meio do gramado chuvoso, privado do respeito e da hospitalidade do anfitrião que encarna o espírito olímpico.

 Nenhum jornal considerou esse fato mais grave do que o enfatizado fracasso de ‘não se atingir o objetivo olímpico’ –embora o 13º lugar destoe muito menos do almejado 10º posto do que deixar na mão um chefe de Estado em visita oficial.

 Desculpe o transtorno, premiê Shinzo Abe, estamos em fase de demolição.

 Cai uma pátria em fraldas, para a instalação de um olimpo de capitais livres de encargos sociais.

 Breve, aqui.

 Senhores senadores, olhem o rosto desses medalhistas antes de baixar o cutelo no pescoço da Presidenta impedida de recepcionar o premiê Abe no Maracanã.

 O do canoeiro Isaquias, talhado a machado, por exemplo.

 Carrega-se ali um pedaço da história do Brasil  –essa que agora está em vossas mãos porque se estivesse de fato nas dele o barco não se renderia à correnteza regressiva.

 Olhem o povo em nome do qual usurpadores querem estreitar mais uma vez o acesso às margens seguras da sociedade.

 Fixem por um minuto os olhos em Isaquias.

 O canoeiro medalhista  traz na pele o saque ancestral a povos desse rincão reduzidos a legiões sem terra-sem floresta – sem teto-sem trabalho-sem direito.

 Esse rosto guarda o horror das aldeias em chamas, da senzala claustrofóbica, da criança maltrapilha pasma pelo açoite a retalhar o lombo do pai feito toucinho cru.

 Traz o rosto de Isaquias a noite insone do quilombo.

 A meia liberdade sem acesso à terra está ali, assim como o estoque de gente banida pela lógica de batustões,  essa que agora os senhores estão prestes a consagrar mais uma vez como ‘sacrifício necessário’.

 A prioridade do jornalismo passa ao largo da fuga ancestral dos isaquias  na contracorrente dos séculos até o pódio da Rio-2016.

 Ao pauta é provar que o ocorrido é anômalo, descabido, irrepetível,  temerário — inviável.

 Varrer a recidiva de autoconfiança e autoestima que possam inspirar esses dezesseis dias em que ‘a organização olímpica venceu a desorganização brasileira’ é imperativo para coibir paralelos com a vida real.

A mão pesada denuncia a inexatidão daquilo que se quer traduzir como  ‘a ruína da corrupção lulopetista’.

 O rosto de Isaquias nos diz que o que está em jogo trata de coisa mais abrangente e conhecida

 Trata de uma encruzilhada clássica na história das nações –o que não inocenta os erros dos seus protagonistas.

 Mas o que a caracteriza, sobretudo, é a crispação de conflitos permanentes em luta de classes aberta e sangrenta.

 A tempestade engata uma transição de ciclo de desenvolvimento à deriva internacional que se estende desde 2008, com o esgotamento da ordem neoliberal.

 Os noticiosos a reduziram  a uma desfrutável faxina da direita no quintal da esquerda.

 A meia verdade brandida à exaustão pelo meio-juiz dissipa o principal no secundário.

 Por exemplo, a intensificação da disputa pela riqueza corrente; a exacerbação dos conflitos pela destinação dos fundos públicos; o braço de ferro pela repartição dos sacrifícios da travessia; o confronto pelo acesso ao estoque da riqueza capaz de mitigar a transição; o escrutínio das políticas e arcabouços institucionais –entre os quais a desdenhada reforma política– que pavimentarão o passo seguinte da história.

 No centro de tudo late a tese da inabilitação do Brasil para comandar democraticamente o seu desenvolvimento.

 Construir uma nação é um ato de ruptura política  que a usurpação golpista quer terceirizar ao mercado, escorraçando a urna e suas escolhas do centro das decisões.

 Delimitar um território, fincar estacas, declarar e exercer soberania não é coisa que se faça impunemente em tempo algum e em qualquer latitude.

 Sobretudo quando se trata, como é o caso, da sorte de um povo e do destino do desenvolvimento em um  dos maiores territórios do globo, dotado das maiores reservas de água, minérios, petróleo, terras férteis, potencial hidrelétrico e solar; ademais de florestas e biodiversidade, tudo isso arrematado por um gigantesco mercado de isaquias.

 O que significa ser tudo isso em uma mudança de época em que a civilização terá que se apoiar em recursos escassos que o Brasil dispõe em abundância?

 Significa o desafio de combinar articulação internacional com soberania intransigente e justamente por isso enfrentar uma colisão sem trégua com a lógica dos capitais sem lei.

 São essas correntezas violentas que movem as raízes estruturais da conjura na qual a mídia se aliou à escória e ao dinheiro  para derrubar uma Presidenta honesta, acusada de pedaladas fiscais.

 Quem melhor encarna o elo entre a superfície e as profundezas desse ardil  é o chefe oculto das operações , o tucano Fernando Henrique Cardoso

 O  ideólogo age movido por uma antiga certeza: não há espaço para um povo de isaquias comandar o seu destino no capitalismo do nosso tempo.

 Menos ainda –diz — para o ‘voluntarismo lulopetista’ construir uma democracia social tardia no coração da América Latina.

 Isaquias, negro e cafuzo, recolha seu remo voluntarioso, a rota de um timoneiro mais alto se alevanta.

 Os acontecimentos recentes resgataram  –no entender do viralatismo–  a pertinência da análise do sociólogo de 1967, ‘Dependência e desenvolvimento na América Latina’,  sobre a inviabilidade de um modelo de desenvolvimento soberano na região.

 Pobres isaquias de todo o Brasil,  adernem ou rendam-se.

 A dependência é estrutural, avisa FH desde 1967 .

 A dependência é bela, adicionaria o  presidente tucano à classe média nos anos 90.

 A dependência é inexorável, diz agora o ideólogo do golpe institucional contra Dilma e o PT.

 FH partiu de um diagnóstico correto, ao apontar o equívoco de uma parte da esquerda brasileira em 1964, que via na burguesia nacional um aliado dos trabalhadores na luta pelo desenvolvimento.

 Mas extraiu daí conclusões equivocadas no extremo oposto.

 O tucano  enxergou na complementariedade entre o capital local e o estrangeiro o reinado definitivo das elites: o desenvolvimento associado e dependente, no qual o consumo da classe média forneceria o amortecedor político ao sistema –e o fluxo de capitais externos lubrificaria o conjunto em um equilíbrio dinâmico.

 Não importa que o pião precisasse girar cada vez mais depressa para não desabar –desde que girasse, tudo bem.

 Faltou abordar o essencial, porém.

 Os conflitos inerentes à associação entre o capital local e o internacional  e o seu custo em libras de carne humana.

 Com quantos isaquias jogados ao mar se faz essa canoa?

 A ausência do olhar dialético magnificaria aquilo que FHC criticara na esquerda dos anos 60: a troca do materialismo histórico por um wishful thinking.

 No seu caso, um autoengano de cosmopolita provinciano, traduzido macroeconomicamente em uma ‘âncora cambial’ que se revelou desastrosa quando o pião parou de girar, os capitais inverteram o curso e a maré baixa revelou uma nação de industrialização destruída, reservas cambiais à míngua, refém do capital especulativo e de seu capitão do mato: as cartas de arrocho do FMI.

 Enquanto durou, a aparente consagração da teoria deu estofo ao  projeto político do sociólogo, que a personificou  na Presidência como se não houvesse amanhã.

 Sobretudo na sôfrega  dilapidação do patrimônio nacional.

 O surgimento do PT e a vitória desconcertante do líder operário em 2002 e 2006 –que fez  a sucessora em 2010, reeleita em 2014–  introduziria um ruído insuportável no escopo desse conformismo estratégico.

 Para revalidar a teoria  e os interesses aos quais ela consagra uma dominância perpétua era necessário desqualificar a heresia de forma exemplar.

 Eis a essência da vendeta que hoje dá base teórica ao viralatismo e ressuscita como farsa a tragédia dos anos 90, adicionalmente comprometida pela inexistência das condições externas momentaneamente favoráveis então.

 Para isso dar certo é necessário derreter e refundir o país como um corredor de vento dos capitais globalizados.

 A aposta extremada explica a contrariedade com qualquer deslize que sugira a existência de vida fora da renúncia absoluta ao comando do desenvolvimento.

 Derrota-la, por sua vez, requer um grau de ousadia maior do que tem sido a disposição de libertar a democracia da passividade a que foi submetida pelo modelo político das últimas décadas.

 É uma corrida contra o tempo.

 O golpe espera cortar a cabeça de Dilma, e aleijar o seu entorno, antes que as contradições disseminem uma resistência para a qual não se preparou.

 Assim como não contava com o sucesso improvável das Olimpíadas.

 E tampouco com a ameaça silenciosa do remo infatigável de Isaquias, que parece determinado a seguir em alta velocidade –e só parar quando atingir a margem firme do país secularmente sonegado à ninguenzada –da qual é parte e ruptura.

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