O crônico gangsterismo comportamental de Donald Trump é uma aula de antipolítica, numa deseducação pública constante convidando o público para uma Guerra Civil permanente
Por Cristiano Addario de Abreu*, compartilhado de A Terra é Redonda
Eis que o mundo foi atirado no “tarifaço” de Donald Trump neste abril de 2025. Muito tem sido escrito sobre este fato, com destaque para a percepção, já muito compartilhada, de que o cálculo principal foi feito para buscar compensar parcialmente o déficit comercial dos EUA com os outros países. Outro ponto a ser destacado é a constante tática mafiosa do atual morador da Casa Branca: sempre chutando no máximo possível em todas as situações, como um jogador blefando e ameaçando, para depois negociar algo menos absurdo, mas ainda assim desproporcionalmente vantajoso para seu lado.
Este crônico gangsterismo comportamental de Donald Trump[i] é uma aula de antipolítica, numa deseducação pública constante convidando o público para uma Guerra Civil permanente, projeto este copiado pela extrema direita colonizada do Brasil (que no momento está enfraquecida, mas tendo força busca apenas aniquilar os discordantes, não considera minimamente seus interesses: sendo assim antipolítica).
Invertendo a máxima da Carl von Clausewitz, de que “a guerra é a continuação da política por outros meios”, Donald Trump faz a política como guerra, e assim instaura cronicamente uma situação de afunilamento do espaço político, que precipita tudo num confrontacionismo destrutivo, desprovido de diálogo. Onde the winner takes it all, e não há espaço para colaboração, negociação, nem ajuda mútua. Típico do banditismo mafioso, muito conhecido dos filmes de Hollywood sobre a máfia italiana ou judaica de NY, ou talvez fosse melhor lembrar mais especificamente, da máfia imobiliária do Queens, de onde Donald Trump surgiu…
Unilateralismo obsessivo
Ainda sobre esta tática de negociação mafiosa, para além de qualquer dimensão psicologizante, cabe destacar um ponto coerente e central da política de Trump no quadro das relações internacionais, que tem escapado às análises sobre o assunto: esse gangsterismo político nas negociações só funciona bem em espaços “fora da lei”, ou melhor, fora de toda e qualquer instituição multilateral.
Logo, tal gangsterismo trumpista carrega na pata do unilateralismo dos EUA contra o mundo: só funciona bem tal tática no unilateralismo, o que é coerente com o obsessivo ataque de Donald Trump contra todos os fóruns e instituições multilaterais do mundo (a maioria deles fundadas pelos EUA no passado).
Cabe destacar o quanto tal forma de tratar a coisa pública vai contra a própria política, inclusive contra as tradições da cultura política dos EUA, que ciclicamente construiu no Congresso (mesmo que de forma muito oligárquica) compromises políticos buscando pacificar o país nos momentos de crises. Compromises estes que foram acordos em que as partes cedem em alguns pontos secundários de suas agendas, para construir um pacto colaborativo mínimo.
Donald Trump parece buscar o oposto: uma Guerra Civil estrutural. E tal confrontacionismo crônico degrada não apenas o espaço político, mas também por consequência o econômico. A tática não colaborativa, que despreza o interesse do outro lado, ameaça degenerar num sistema de perda-perda em cadeia nessa guerra tarifária lançada por Donald Trump.
Algo que destoa de forma cristalina do discurso professado pela China, de busca de um jogo econômico win-win pelo mundo. Por mais que o lado mais industrializado sempre consiga win more que os outros, e a China já é a oficina do mundo, concentrando algo próximo 1/3 do PIB industrial planetário, ainda assim, o discurso e a prática econômica da China declara considerar os interesses dos outros lados, mesmo que sejam os interesses de produtores primários exportadores.
A farsa do protecionismo tarifário trumpista

O protecionismo tarifário foi um dos tripés do American System,[ii] a escola de pensamento econômico dos EUA do séc. XIX, que fundamentou intelectualmente o salto industrial do país sob hegemonia do partido republicano de então: vitoriosos na Guerra Civil, o projeto político daquele partido republicano controlou hegemonicamente a Casa Branca desde a Guerra Civil até 1912, e colocou o país na marcha de uma incrível industrialização. Mas obviamente, tal sucesso industrializante não foi alcançado apenas com protecionismo tarifário, mas dentro de um amplo plano de desenvolvimento.
As bases do tripé do American System eram: (i) protecionismo tarifário; (ii) um banco nacional, ou um sistema bancário nacional; (iii) as chamadas internal improvements (melhorias internas).
Quanto ao sistema bancário nacional, historicamente, os EUA transitaram nesta frente bancária com soluções alternativas: desde o 1° Banco dos Estados Unidos, fundado por Alexander Hamilton em 1791, fechado em 1811, e logo retomado no 2° banco dos Estados Unidos em 1816, e posteriormente fechado pelo presidente Andrew Jackson em 1836, até finalmente no Banking Act de Lincoln, em 1863, criarem um sistema de bancos federais em um National Banking System. Estruturando assim um sistema robusto de financiamento produtivo, coordenado com poderes públicos, que sobretudo via doação de terras, alavancava (e assim indiretamente também financiava) a ampliação produtiva.
Com destaque neste ponto para a concessão, pelo governo federal, apenas para estes bancos federais, do direito de emissão do dólar fiduciário Greenback do governo Lincoln e da Reconstrução (1865-1876) após a Guerra Civil (1861-1865). Tal política monetária, chamada no séc. XIX de papelista (fiduciária), foi central no salto industrial desenvolvimentista dos EUA no pós Guerra Civil: financiando o assalariamento e a expansão produtiva.
A coordenação político/econômico entre tais bancos privados, e suas autorizações federais para emissão dos Greenbacks pela Casa Branca, foi fundamental para o sucesso da industrialização dos EUA, tendo sido inspiração até no plano industrializante de Rui Barbosa no início da república brasileira (no chamado Encilhamento).
Nos EUA essa expansão monetária fiduciária, num país que saia da escravidão, assim ampliava o assalariamento, e tinha o seu território central vivido uma reforma agrária desde o Homestead Act de 1863, criando uma ampla e crescente população de famílias proprietárias/produtoras agrícolas, ampliando e barateando a produção alimentar e de matérias primas, o que permitiu uma consistente e sólida ampliação industrial. Que foi alavancada pelo, finalmente ele, o protecionismo industrial.
As internal improvements surgem como um termo amplo, muitas vezes traduzido de forma imprecisa como “melhorias internas”, sendo um termo plástico para descrever melhorias necessárias ao desenvolvimento, mas cuja execução era de difícil retorno lucrativo. Normalmente, internal improvements é confundido com obras de transporte, comunicação e infraestrutura, mas não significava apenas isso.
Tal expressão é assim muito identificada com as obras de canalização e transporte fluvial, navegação, saneamento básico e, obviamente, a explosiva expansão ferroviária dos EUA oitocentista. Mas não era apenas isso. Mesmo o sistema nacional de correios dos EUA, construído sistematicamente pelo governo federal desde 1775 (o correio é anterior à Declaração de Independência), pode também ser incluído como internal improvements.
Assim como a melhoria do sistema educacional e científico, com escolas, universidades, laboratórios, bibliotecas, e observatórios, são incluídos neste termo coringa também. Os diversos investimentos públicos, diretos e indiretos, para instituições universitárias e educacionais (tanto federais, como estaduais) eram vistos e considerados como internal improvements.
Justamente o que o atual presidente Donald Trump segue cortando desbragadamente, sem critérios científicos nenhum, contra a ciência e a educação dos EUA. Destruindo todo financiamento público para as universidades, e até tendo em seu governo propostas de fecharem toda a Secretaria Federal de educação! Logo, o Sr. Trump trabalha no sentido oposto do propugnado pelo American System que industrializou os EUA, indo contra as práticas de internal improvements, praticando agora algo que se poderia nomear como internal decrease, internal worsening, ou internal setback…
Cabe lembrar que este Sr. Trump também propôs privatizar os correios dos EUA, destruindo esta instituição central na constituição deste país: comunicação livre, segurança comunicacional, inviolabilidade das correspondências, estímulo da circulação da palavra escrita (não só via cartas, mas via: jornais, revistas e livros, enviados pelo correio), são conceitos que fundamentam a importância dos correios (nacional e público) na construção dos EUA.
Infelizmente, tais conceitos não são mais óbvios para a maioria das pessoas hoje, que não têm dimensão da importância da instituição “correio” para a busca de um projeto Iluminista… Talvez com a flagrante deterioração da comunicação digital, com redes sociais, plataformas digitais e emails, não garantindo nenhuma segurança comunicacional, haja esperança da recuperação de alguma consciência da importância da instituição pública correio.
Era vital que a opinião pública mundial lutasse para a criação de email dos correios: a digitalização dos correios públicos pelo mundo é fundamental para haver algum controle sobre os monopólios das Big Tech,[iii] que não por acaso, estão todas (as seis empresas monopólicas…) apoiando a regressiva gestão trumpista.
O caminho processual e institucional vs tratamento de choque midiático/publicitário
No século XIX era dito sobre a Prússia, que era um exército que tinha um país, e sobre os EUA que era um correio que tinha um país…. Pois esta visão projetada do correio como instituição central, funcionando como centro comunitário, agência bancária, e até escola, nas cidades novas, é a trilha desenvolvimentista do American System, que coordena melhorias materiais com culturais e intelectuais, em soluções institucionais. Que podem ser aqui muito bem sintetizadas na instituição correio. Pois Donald Trump combate essa visão do desenvolvimento, material/ intelectual/ social/ espiritual (no sentido hegeliano), como um caminho coordenado institucionalmente.
Protecionismo tarifário: eis, finalmente, o terceiro tripé do American System, que como a construção do presente texto já descreveu, foi uma cartada industrializante dos EUA do séc. XIX (e a primeira metade do XX) que nunca veio isolada, mas dentro de um amplo e articulado quadro de proteção ao assalariamento, maior emissão monetária, investimentos e subsídios educacionais e científicos, subsídios e financiamentos estatais para melhorias na infraestrutura… Enfim, todo um contexto articulado proporcionando uma coordenada política de industrialização.
O protecionismo tarifário foi uma constante nos EUA desde o começo da Guerra Civil até as consequências da crise de 1929. O presidente/apresentador Donald Trump invocou William Mckinley (presidência:1897-1901) como seu presidente modelo, e muitos incautos lembraram das tarifas como uma novidade deste morador da Casa Branca, mas o protecionismo tarifário foi uma constante de toda a hegemonia republicana na Casa Branca desde a Guerra Civil,[iv] iniciada com a Morrill Tariff de1861, que seguirá até os anos 1930.
O protecionismo tarifário no século XIX, curiosamente, estava inicialmente muito conectado com o legítimo objetivo arrecadatório dos países. Algo que Donald Trump hoje, regressivo até nisso, replica com fins de reversão do déficit. No século XIX a maioria das legislações tarifárias então tinha este singelo objetivo arrecadatório. Pois é Alexander Hamilton (1755-1804), precursor do American System, quem destaca e defende que a agenda tarifária precisa considerar a defesa das “indústrias infantes”, para o desenvolvimento industrial do país.
Pois Donald Trump, em sua fraude hamiltoniana, invocou dia 2 de abril como seu “Dia da Libertação” para reindustrializar os EUA, lançando tarifas sobre o mundo, sobretudo contra os países com quem EUA têm déficit comercial. Logo, sobretudo contra países industriosos da Ásia, com destaque para Vietnã e, sobretudo, China. Mas também lançou seu tarifaço sobre produtos tropicais como café e abacate… Produtos estes que não podem ser produzidos nos EUA, sendo, portanto, um protecionismo desprovido de justificativa de defesa de uma “indústria infante”, sendo apenas um protecionismo arrecadatório para os EUA e punitivo externamente.
Esta afirmação de ser uma taxação punitiva externamente, cabe aqui destacar, pois ela só é entendida ao se retomar a tática de gangsterismo mafioso de Trump: taxar produtos agrícolas que são impossíveis de serem produzidos nos EUA, só se explica como tática de ameaça para se arrancar outras vantagens. Revela uma estratégia de coerção para extrair concessões. Além de servir como peça publicitária para parcelas radicalizadas de seu eleitorado mais xenófobo red neck.
Donald Trump depois do ataque de 2 de abril, apesar de sua estridente verborragia viágrica, regrediu nas tarifas da maioria dos países, suspendeu as tarifas por 90 dias para a maioria deles, visando “renegociar com cada um”. Eis aí o unilateralismo mafioso trumpista mostrando sua diplomacia do porrete: sua estratégia anti-institucional só funciona sob a lógica do gueto, fora da Lei, quando o mais forte pode espancar os mais fracos um por um. Sob a lógica das instituições multilaterais sua estratégia mafiosa se enfraquece, sendo uma regressão política anti-institucional que já demonstra ser difícil de ser eficaz no médio prazo.
Essa lógica mafiosa da estratégia trumpista unilateralista, além de ser visivelmente complicada de ser mantida num mundo de alta complexidade produtiva e comercial, rapidamente tem se mostrado ineficaz para o principal objetivo alegado do tarifaço: a reindustrialização dos EUA.
A estratégia trumpista não apenas falha em promover a reindustrialização dos EUA, como expõe sua inconsistência. O alvo central seria a China, mas as tarifas já foram retiradas justamente dos produtos mais sofisticados, nas chamas exceções[v]: computadores, smartphone, eletrônicos, baterias de lítio, e outros produtos de alta complexidade. Mantendo-se as tarifas sobretudo em itens de baixo valor agregado, como: têxteis, tapower e plásticos. Isso revela a farsa do discurso protecionista: a indústria americana do século XXI não se reconstruiria com medidas isoladas e aleatórias, mas com um planejamento estrutural de longo prazo.
A industrialização dos EUA ocorreu mediante políticas institucionais: com socialização crescente de custos de educação, melhorias educacionais e científicas feitas institucionalmente (não aleatoriamente), com investimento maciço em educação, ciência e ganhos salariais constantes, sustentados por um protecionismo articulado, com defesa de aumentos salariais.
A defesa dos aumentos salariais, como consequência positiva do protecionismo, foi no American System desenvolvida por Henry Carey (1793-1879), antecipando ideias do produtivismo/ consumismo fordista e do keynesianismo. Hoje, porém, o protecionismo trumpista exige o oposto: a precarização salarial dos trabalhadores para viabilizar custos baixos para uma reindustrialização imaginária, mas que não se configura no horizonte projetado pelas políticas deste governo.
Enquanto o passado industrial americano foi construído sobre bases sólidas e progressistas, a atual estratégia é pouco mais que um improviso mafioso, regressivo socialmente, politicamente e tecnologicamente. Sendo assim incapaz de enfrentar os desafios produtivos do presente e do futuro.
*Cristiano Addario de Abreu é doutor em história econômica pela USP.

Notas
[i] https://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/11/internacional/1489199894_976091.html
[ii] https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8137/tde-11082023-125212/es.php
[iii] https://www.brasil247.com/blog/a-inteligencia-artificial-e-a-estrada-da-servidao-voluntaria
[iv] https://www.nber.org/system/files/working_papers/w26256/w26256.pdf
[v] https://www.nytimes.com/2025/04/12/technology/trump-electronics-tariffs.html