Processos de produção do algodão – do qual indústria é dependente – devem passar por revisão profunda para atender aos compromissos de redução de emissões
Por Yamê Reis, compartilhado de Projeto Colabora
Na foto: Plantação de algodão em Mato Grosso: revisão tecnológica dos processos de produção para atender aos compromissos globais de redução de emissão de gases de efeito estufa (Foto: Florian Plaucheur / AFP – 08/08/2020)
A questão da perda da biodiversidade atingiu um nível sem precedentes neste século, deixando a humanidade numa encruzilhada em relação ao legado que estamos deixando às futuras gerações. Biodiversidade significa natureza viva: plantas e animais, os ecossistemas onde vivem, e como interagem entre si. Todos os elementos das nossas roupas vêm da natureza e nossa missão deveria ser, prioritariamente, a conservação dos ecossistemas, evitando sua degradação por meio de práticas de desmatamento ou monocultura, especialmente as que utilizam grandes quantidades de agrotóxicos.
Os materiais têxteis são responsáveis pela maior parte da pegada de carbono dos produtos de moda: algodão e viscose têm provocado impactos devastadores pelo desmatamento e uso intensivo de produtos químicos; enquanto o poliéster é algo do qual a moda deve se livrar, tanto por sua origem nos combustíveis fósseis quanto pela disseminação de microplásticos nos oceanos durante as lavagens das roupas. Mas não basta trocar o poliéster pelas fibras naturais se estas forem cultivadas em monoculturas destruidoras da biodiversidade de biomas como o Cerrado, a Amazônia ou a Mata Atlântica, já tão intensamente devastados pelo agronegócio, a pecuária e a mineração.
Quando falamos de biodiversidade estamos nos referindo também às populações originárias e guardiãs desses territórios, ao seu conhecimento tradicional no cultivo dos alimentos e nos cuidados do solo. Portanto, devemos considerar que materiais sustentáveis são aqueles que no seu processo produtivo contribuem para a preservação da biodiversidade dos ecossistemas, proporcionando a segurança alimentar, a renda e um futuro digno para as futuras gerações.
Os processos de produção do algodão, por exemplo, do qual nossa indústria é tão dependente, deve passar por uma revisão tecnológica profunda para atender aos compromissos globais de redução de emissão de gases de efeito estufa. O uso intensivo de agrotóxicos, além de contaminar os lençóis freáticos e afetar diretamente a saúde dos trabalhadores, torna o solo incapaz de reter o carbono da atmosfera.
Precisamos propor uma transição de modelo de produção de matérias-primas naturais que tenham dois compromissos principais: a restauração da biodiversidade dos ecossistemas e a geração de renda e segurança alimentar. A transição tem que reconhecer a relação estreita entre esses dois elementos tal qual vemos nas práticas da agroecologia e da agrofloresta, onde os processos produtivos acontecem respeitando as pessoas e a diversidade das espécies que habitam aquele território. Os objetivos devem ser: redesenhar sistemas agrícolas que melhorem a produtividade sem causar impacto negativo à biodiversidade, tornando mais eficientes o uso da terra e da água; e redesenhar um novo modelo de cultivo que renuncie à produção de commodities de exportação, que geram poucos empregos e causam danos ambientais irreversíveis. É preciso promover os sistemas de certificação participativa criados no Brasil por agricultores familiares com grande potencial de aplicação em outros países do Sul global. As marcas de moda podem, e devem, comprar diretamente o algodão desses produtores agroecológicos, contribuindo para a verdadeira regeneração dos ecossistemas.
Os maiores indicadores de pobreza do Brasil estão nas áreas rurais e interioranas, e ali também estão as nossas maiores riquezas naturais, como os biomas da Amazônia e do Cerrado. Esses territórios têm sido palco constante de conflitos socioambientais, movimentados pelo avanço da grilagem, do desmatamento e da agropecuária. Não há como atingirmos as metas do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas até 2030 sem a erradicação da pobreza e do desmatamento, objetivos que não têm sido priorizados por políticas públicas.
É preciso despertar para o gigantesco desafio de manter entre 1,5 e 2 graus o aquecimento da Terra, de modo a tornar possível a continuidade da vida das espécies como conhecemos hoje. Conforme vemos no Índice de Transparência da Moda Brasil 2021, apenas 14% das marcas reportaram a rastreabilidade de seus materiais e nenhuma publicou seu compromisso para o desmatamento zero.
Cabe então perguntar: como podemos despertar nas marcas brasileiras o senso de urgência na ação para a transformação? E o que podemos esperar para 2022?