Por Marcella Fernandes, compartilhado de Huffpost Brasil –
O HuffPost reuniu as principais dúvidas sobre a reta final dos testes das vacinas e os passos até que elas cheguem aos postos de saúde.
A farmacêutica americana Pfizer e sua parceira alemã BioNTech divulgaram na segunda (9) resultados preliminares de eficácia da fase 3 da vacina contra covid-19. São os primeiros dados desse tipo de um ensaio clínico em larga escala de um imunizante contra o novo coronavírus. O anúncio abre caminho para pedir um tipo de registro de uso emergencial nas agência reguladoras possivelmente no fim do mês.
Apesar de ser motivo para otimismo, cientistas alertam que a vacina não é uma “bala de prata” para acabar com a pandemia. Questões como capacidade de produção e de distribuição dos imunizantes, além da necessidade de continuar os testes em seres humanos, são pontos centrais para entender o que acontece após esse tipo de anúncio.
Embora não haja um acordo do Brasil com a Pfizer, anúncios semelhantes que podem impactar os brasileiros devem ser feitos até o fim do ano. Há parcerias de instituições brasileiras com laboratórios responsáveis por outras vacinas em teste cujos resultados preliminares de eficácia devem ser divulgados ainda em 2020.
São 3 as iniciativas: o contrato da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) para acesso à vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford, a parceria do Instituto Butantan com a Sinovac, e a Covax-Facility, uma iniciativa global da qual o Brasil faz parte.
O HuffPost Brasil reuniu as principais dúvidas sobre as etapas finais de testes das vacinas e dos passos até chegarem aos postos de saúde.
Como começa desenvolvimento de uma vacina?
O primeiro passo dos cientistas para produzir uma vacina é a fase exploratória. Nela, se faz o sequenciamento genético do antígeno. Em geral, demora de 2 a 4 anos, mas foi feita em meses no caso do SARS-CoV-2.
Em seguida, vem a fase pré-clínica, com estudos in vitro (em laboratório) e com animais, em que se testa a segurança e a capacidade de produzir resposta imunológica. Muitas dão errado nesse momento. A chance de passar para a próxima etapa varia entre 7% a 10%, de acordo com cientistas.
Como são os testes em humanos?
Os testes em humanos, também chamados de clínicos, são compostos por 3 fases. A primeira é com voluntários sadios e envolve entre 20 a 100 pessoas. Se testam efeitos adversos e a capacidade de produzir resposta imune.
A fase 2 envolve centenas de voluntários e identifica efeitos adversos a curto-prazo mais comuns, verifica como o sistema imune de voluntários está respondendo à vacina – produção de anticorpos e das chamadas “células T” – e qual pode ser o esquema de imunização melhor.
No caso da covid-19, algumas candidatas à vacina têm mostrado evidências de que podem ser necessárias duas doses. É o caso da Pfizer, da Coronavac (Sinovac) e da vacina de Oxford. Esse fator impacta na produção, distribuição do produto e adesão das pessoas à vacinação.
A proteção ocorre pela produção de anticorpos?
O sistema imunológico funciona tanto pela produção de anticorpos como pela ação das chamadas “células T”. Esse tipo de linfócito ataca células infectadas por parasitas intracelulares, como vírus. Um tipo específico de célula T libera citocinas, que matam as células infectadas, impedindo a proliferação do patógeno. Ambas as respostas imunológicas agem em conjunto.
A ação das células T pode ser especialmente importante no combate à covid-19 porque há registros de pessoas que se infectaram e que tiveram redução de anticorpos para o vírus após alguns meses.
O que são os dados de eficácia na fase 3?
A fase 3 envolve milhares de voluntários e tem variado em torno de 30 mil a 60 mil nas diferentes iniciativas no caso da covid-19. Devido ao grande número de participantes, é só nesse etapa que é possível aferir de fato a eficácia.
Seguindo protocolos de pesquisa – como perfil da amostra e aval dos comitês de ética – os voluntários se dividem em dois grupos: um recebe a vacina e outro recebe um placebo. Os voluntários não sabem a qual grupo pertencem. Para verificar a eficácia, os cientistas comparam o percentual de casos confirmados nesses dois grupos.
Por exemplo, se houver 100% de casos confirmados no grupo que não recebeu a vacina e 20% de confirmados no que recebeu, a eficácia é de 80%.
Há um patamar mínimo necessário para poder fazer essa comparação – em geral, em torno de 150 casos confirmados no caso da covid-19. Devido à urgência da crise sanitária, os cientistas têm adotado o que se chama “análise interina”. Esse mecanismo previsto nos estudos permite analisar resultados em patamares mais baixos.
Foi o que a Pfizer fez. Esse resultado de eficácia de 90% anunciado não necessariamente será o resultado final do teste clínico. Segundo os dados divulgados nesta segunda, há 43.538 participantes no estudo e foram analisados 94 casos confirmados. Neste grupo, 90% não recebeu a imunização. Ou seja, apenas 8 pessoas vacinadas foram infectadas.
A vacina da Pfizer vai ser liberada para uso?
O ensaio clínico vai continuar até o patamar de 164 casos. A Food and Drug Administration (FDA), agência regulatória dos Estados Unidos – equivalente à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) no Brasil – estabelece que o pedido de registro para uso emergencial só pode ser feito após 2 meses da aplicação da segunda dose em pelo menos metade dos voluntários, o que só deve ocorrer no fim de novembro.
Os cientistas alertaram que a farmacêutica americana fez o comunicado à imprensa, mas não mostrou os dados científicos. Entre os voluntários, é possível saber que 41% têm entre 56 a 85 anos, mas não há informações sobre os grupos de risco, como pessoas com diabetes ou cardiopatias, por exemplo.
Também não foram divulgados dados sobre voluntários assintomáticos nos dois grupos. “Isso seria importante para saber se a vacina previne o contágio, o que, embora não seja essencial, seria muito bom”, afirmou a microbiologista Natalia Pasternack, fundadora do Instituto Questão de Ciência, em sua coluna no jornal O Globo.
Quais os objetivos de uma vacina?
Há diferentes objetivos de uma vacina, chamados de “desfechos”, pelos pesquisadores. Ela pode servir para evitar uma infecção, o adoecimento da pessoa após infectada ou a transmissão do patógeno.
O patamar mínimo de 50% de eficácia para uma vacina contra covid-19 anunciado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) se refere ao adoecimento. Ou seja, não há como liberar um imunizante que não impeça que ao menos metade dos vacinados adoeça.
O que é necessário para registrar uma vacina?
A Anvisa exige ao menos 3.000 pessoas vacinadas e, em geral, adota 70% de eficácia, mas esse valor deve ser avaliado considerando a relação risco-benefício em cada caso. Para agilizar a liberação do registro – quando houver resultados da fase 3 –, a agência já vem analisado dados das fases anteriores, tanto da vacina de Oxford quanto da desenvolvida pelo Butantan.
No caso do laboratório ligado ao governo de São Paulo, a análise preliminar – semelhante à feita pela Pfizer – será feita quando forem atingidos 61 casos confirmados entre os voluntários. Caso não seja atingido o patamar de 50% de imunizados neste grupo, o ensaio clínico segue até alcançar 150 casos.
Embora a previsão seja de que 13 mil pessoas participem do estudo – e ao menos 9.000 já receberam o imunizante ou o placebo –, os 61 casos ainda não foram atingidos. Um dos possíveis motivos é a queda na circulação do vírus no Brasil, já que, para alcançar os resultados, é necessário que os voluntários entrem em contato com o SARS-CoV-2.
Nesta segunda-feira, a Anvisa anunciou uma interrupção nos testes da Coronavac, o que irá atrasar o calendário. A pausa ocorreu devido a um “evento grave adverso” no dia 29 de outubro, o que pode incluir desde sintomas clínicos graves até a morte de um voluntário. É preciso investigar se esse evento foi causado pela vacina ou não.
Os dados enviados pelo Butantan serão analisados pela Anvisa que irá julgar o “risco/benefício da continuidade do estudo”. Com a interrupção dos testes, nenhum novo voluntário poderá ser vacinado. De acordo com o comunicado, “mais detalhes do estudo têm comunicação vedada em conformidade com os compromissos de confidencialidade assumidos no protocolo de desenvolvimento vacinal”.
O mesmo tipo de interrupção aconteceu com outras vacinas, como a de Oxford, e os testes foram retomados após investigação do caso.
A vacina irá acabar com a pandemia?
Para acabar a pandemia é preciso que seja atingida a chamada imunidade de rebanho, quando um número suficiente de pessoas se torna imune a uma doença para parar a propagação. Nesse cenário, a comunidade fica protegida, ainda que nem todos indivíduos tenham desenvolvido imunidade.
Para ser calculada, ela depende da taxa de reprodução do vírus (R) e da eficácia da vacina. Ao se considerar uma taxa de 2 e eficácia de 50%, por exemplo, 100% da população teria de ser vacinada para alcançar a imunidade coletiva, de acordo com pesquisadores.
Quanto mais alta a eficácia do imunizante, menor a cobertura vacinal necessária. Uma eficácia de 100% – impossível de ser atingida na prática – exigiria que metade da população se vacinasse.
Os números que serão divulgados pelos cientistas também não representam a capacidade de proteção na prática, que é mais baixa devido a diversos fatores. Um deles é o caminho até os postos de saúde. “Um exemplo fácil de entender são as vacinas que requerem condições especiais de temperatura, difíceis de manter no campo. Por exemplo, uma vacina dessas pode não ter a mesma eficiência em cidades do Amazonas, um lugar quente onde seria mais difícil manter a temperatura adequada”, afirmou ao HuffPost Brasil a epidemiologista Denise Garrett, vice-presidente do Instituto Sabin de Vacinas.
Outros fator é que a amostra de voluntários de alguns testes é menos heterogênea do que a população em geral. “No caso da covid, é um risco, já que em alguns ensaios temos pouca representatividade de pacientes idosos e com comorbidades”, explica a cientista. “Ou seja, a efetividade envolve variáveis como adesão (para vacinas de 2 doses), disponibilidade de recursos (logística), variabilidade do paciente e outros fatores”, completa Garrett.
O que é a fase 4 de testes?
Após aprovação pelas agências reguladoras, os estudos passam para a fase 4, que também monitoram segurança e eficácia. Efeitos adversos muito raros só podem ser identificados nessa etapa, porque é quando mais gente é vacinada.
O uso em massa de um imunizante para covid-19 não é uma realidade para os próximos meses. As previsões globais da Covax-Facility são de que, em uma primeira fase, as doses estejam disponíveis para trabalhadores de saúde, que representam 3% da população. Um segundo momento incluiria pacientes com comorbidade, cerca de 20% das populações. Não há propostas sobre outras fases por preocupações com capacidade produtiva dos laboratórios.
Quais vacinas podem chegar aos postos brasileiros?
O acordo do Instituto Butantan com a farmacêutica chinesa Sinovac prevê a compra de 6 milhões de doses prontas e importação de insumos para que outras 40 milhões sejam finalizadas no Brasil até dezembro. Já para viabilizar todas as etapas de fabricação, é necessária a construção de uma fábrica própria, por questões de biossegurança. A conclusão da obra está prevista para 2022. Nesse meio tempo, não há previsão de acesso a doses adicionais.
Embora os testes da chamada Coronavac estejam avançados, há dúvidas de como ela será distribuída, caso seja comprovada sua eficácia. Em geral, cabe ao Ministério da Saúde, por meio do Programa Nacional de Imunização (PNI), definir a estratégia de vacinação, o que inclui decisões sobre grupos prioritários, número de doses e o calendário de distribuição em todos os estados, em coordenação com as secretarias estaduais de Saúde.
Devido à disputa política entre o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e o presidente Jair Bolsonaro, a Coronavac ainda não foi incluída nos planos do Ministério da Saúde. Nos bastidores, a expectativa é de que isso aconteça se ela obtiver registro da Anvisa. Isso só será possível se houver comprovação científica de sua segurança e eficácia.
O governo federal, por sua vez, fechou outras duas estratégias de acesso a imunizantes. O acordo com a farmacêutica britânica AstraZeneca, responsável pelo produto desenvolvido pela Universidade de Oxford, prevê acesso a 100,4 milhões de doses para o primeiro semestre e insumos que permitirão a produção de outras 110 milhões de doses no segundo semestre de 2021, pelo Bio-Manguinhos, laboratório da Fiocruz.
Já a Covax-Facility garantiria outras 42 milhões de doses. A iniciativa global funciona como uma coalizão em que os países participantes dividem o risco de investimento tecnológico e apostam em várias iniciativas de imunizantes. Em troca, podem ter acesso à vacina que se provar segura e eficaz. Entre as candidatas do grupo, está a desenvolvida pela Universidade de Oxford e outras 8. A lista não inclui o imunizante da Pfizer.