O que aprendi sobre os brancos desde que me casei com um homem negro

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Por Luciana Bugni, do Universa, publicado no Portal Gelédes – 

“Eu não sou racista”, “Não é possível que ainda exista racismo no Brasil” são frases que nós brancos dizemos com tranquilidade. Eu nunca entendi direito durante minha adolescência e grande parte da idade adulta, o que era o racismo na prática. É impossível que eu entenda isso, como é impossível que você, meu leitor branco, entenda também. Não dá para compreender o que a gente não vive.

E se seu ambiente de trabalho fosse assim, meio a meio? (iSTock)

Por isso, a gente estuda. Entender o racismo funciona mais ou menos assim: você não consegue entender o que o outro sente, então você ouve o outro. Vale para qualquer relação: casais, amigos, colegas de trabalho. E brancos com negros. Ah, mas então o negro precisa parar e ouvir o que eu, branco, sinto quando perco minha vaga para ele por causa das cotas? Se ele quiser, sim. Mas a verdade é que ele não precisa. Porque, como você estudou na escola, os negros foram arrastados em navios até aqui por muitos séculos. Eles foram libertos há pouco mais de 130 anos, mas o que foi feito desde então para reparar essa condição? Ficaram sem trabalho, sem casa e sob um forte senso de racismo que não os considerava SERES HUMANOS. Ok, tudo isso você sabe, porque você estudou. E agora, passado esse século e meio: em que ponto nós, brancos, estamos, dessa luta?

Quando conheci meu marido, o jornalista esportivo Rodolfo Rodrigues, não imaginei que ele vivesse o racismo. Negro de pele clara, ele herdou da mãe os traços brancos gaúchos que são revestidos pela pele escura que ele herdou no pai. A mistura resulta no eufemismo racista que vira e mexe dizemos para pessoas negras de pele clara na praia: “Você está com uma cor linda”. Ele ouve o “elogio” calado. Ele não está com aquela pele. Ele É negro.




Não sei quantas vezes na minha vida eu disse que estava ficando pretinha, que meu objetivo do verão era ficar preta, que eu ia voltar da praia bem pretinha. Aprendi muito tardiamente (eu diria que algumas semanas atrás, com a repórter Nathália Geraldo, que trabalha em Universa e também é negra de pele clara) que isso é racismo. Beleza, bola para frente. Eu quero ficar bronzeada. Preta, neguinha, negra, nunca serei. Sou uma pessoa branca.

Com a convivência com Rodolfo, percebi que ser negro era considerado um apelido engraçado. Há quase uma década, cabia ainda brincar com piadas altamente racistas sob a desculpa de “ele é meu amigo e nunca se incomodou com isso”. Eu acreditava que ele realmente não se incomodava até o dia em que perguntei: “Você se incomoda quando todos estão dizendo que você é preto em tom de brincadeira repetidas vezes?” Surpresa: ele se incomodava. Com a difusão da informação nos últimos anos, graças a Deus, os brancos de nosso círculo foram parando de fazer brincadeiras com a cor da pele dele. E eu aprendi mais essa: não é porque a pessoa não diz que se incomoda que ela está de boa com aquilo. Próximo passo.

A gente convive com negros, claro que convive. Várias das pessoas que nos servem são negras. Trabalhando conosco nas grandes redações? Poucos.

Essa crítica foi muito bem-feita pela repórter da Piauí Yasmin Santos na matéria de capa desse mês. Ela faz uma bela análise sobre o assunto sob a própria perspectiva, de mulher negra isolada na grande imprensa. É importante que nós, brancos, reconheçamos o racismo no meio em que estamos inseridos. O meu é o jornalismo. Trabalhar com Nathália Geraldo me ensina todos os dias.

O racismo corre embaixo das nossas vistas

Um dia, no auge da temporada de réveillon no Rio de Janeiro, ficamos, eu e Rodolfo, na praia até mais tarde e não conseguimos achar um taxi ou uber para voltar para casa. Entramos no metrô naquele horário de rush do começo da noite. O Rio de Janeiro inteiro saindo da zona sul e indo para algum lugar. No vagão, Rodolfo disse: “você é a única branca daqui”. Eu tinha percebido. Todos os passageiros, que estavam na praia se divertindo ou trabalhando, estavam indo para casa naquela noite de metrô, o meio de transporte mais barato, e eram negros. Eu, normalmente no conforto de um taxi essa hora, nunca tinha notado. O racismo anda debaixo da terra. A gente realmente não vê, se não quiser.

Há algumas semanas, o técnico do Bahia Roger Machado fez uma declaração emocionante numa coletiva. Ele disse que era raro alcançar uma posição como aquela no futebol, por mais que os negros sejam os verdadeiros protagonistas do esporte em nosso país. Ele discutiu na coletiva a população carcerária, diferenças salariais, número de mortes, violência etc. por cinco minutos em que os jornalistas ficaram ali, aprendendo. Encantados.

Nossos colegas ficaram empolgados — e eu também — afinal, finalmente estamos falando sobre isso. Rodolfo teve uma reação que eu estranhei a princípio. “Não adianta curtir o discurso do Roger se dentro das redações continuamos sem pessoas negras”, ele disse em seu popular Twitter, onde normalmente posta os números do futebol, setor em que ele se especializou. As postagens reclamando de racismo tiveram um número consideravalemente mais baixo de interações do que ele está acostumado.

Por que ninguém quer falar disso?, eu perguntei ingenuamente. E, num indigesto café da manhã, ele perguntou se eu tinha contratado algum jornalista negro recentemente. Eu havia contratado uma repórter branca há duas semanas. Ele deu de ombros como quem sugere que o racismo estava lá dentro de nossa casa — essa casa interracial que eu me gabo de ter.

Recentemente, após os casos de injúria racial constantes no futebol, o narrador Julio Oliveira falou em um programa da Sportv. Ele dizia que vê o racismo quando, num restaurante vazio, é acomodado nos fundos. Nunca acreditei que isso existia e é mesmo de duvidar (afinal, sou branca, nunca vivi nada parecido). Só entendi quando cheguei com meu marido em um restaurante famoso, uns anos atrás, às 18h30. O local estava totalmente vazio, mas o metri, confuso, pediu que esperássemos. Ainda sob a luz do horário de verão, ele não sabia se nos acomodava na varanda, que tinha vista para calçada, o que queríamos. Nesse tempo, uma senhora loira chegou e o metri arrumou uma mesa para ela imediatamente. Depois de um tempo, ele nos colocou na varanda, como desejávamos, mas atrás de uma planta, na última mesa, próxima ao banheiro. Rodolfo disse que estava acostumado. Eu fiquei muda.

A situação se repete em lojas de shopping — sou atendida bem antes dele em qualquer situação. Dia desses, andando na Av. Faria Lima, em São Paulo, em um dia frio, ele entrou no Shopping Iguatemi para usar o banheiro. Ele estava de jeans e moleton com capuz e nem percebeu que “deveria” ter tirado o capuz. Foi seguido por dois seguranças até o banheiro. Saiu constrangido.

Lembro disso cada vez que penso em atravessar a rua quando vejo um moleque de capuz — e geralmente eles são negros. Sabemos o que eles sentem? Nem ideia. Jamais entenderemos. O que podemos, como sugere Chelsea Handler em seu documentário na Netflix “Hello, Privilege”, é pensar sobre isso. E então, imediatamente, começar a fazer. Olhar para o lado, constatar que vivemos entre brancos e traçar estratégias para mudar esse quadro imediatamente.

O filme de Chelsea, aliás, é feito de uma branca para brancos. Os negros sabem tudo aquilo de cor. A gente é que tem que colocar a cabeça para funcionar e pensar em onde está o nosso racismo que não chama negros para trabalhar com a gente com a desculpa de “eu não os conheço”. Não ser racista não basta, já disse Angela Davis há 40 anos. Ser antirracista é ir buscá-los onde eles estiverem e treiná-los para que se equiparem em qualidade ao profissional que teve todos os privilégios que eu e você tivemos.

Mas estamos caminhando para isso?

Quando vi a bancada da Sportv essa semana com a repórter Débora Gares e o repórter Diego Moraes, fiquei empolgada. Aquilo para mim é esclarecedor. Mandei uma mensagem para o Rodolfo dizendo que 50% das pessoas no debate era negra. Ele de novo se mostrou desesperançoso. “São dois negros falando sobre racismo de costas para uma redação majoritariamente branca. Eu quero é metade da redação negra e todo mundo falando só de futebol, que é um assunto muito mais legal”.

Fiquei meio irritada: afinal, nada está bom para ele? Aí fui percebendo a postura do próprio Diego: ele estava com medo de falar todo o racismo que vivencia na sua profissão, por receio de perder o emprego. Será que aí na sua empresa não tem alguém com medo de reclamar do nosso comportamento? Mas peraí: quantos negros tem aí na sua empresa?

Outro dia perguntei isso para um amigo que vende carros de luxo. Ele disse que da porta da oficina para trás, 100%. No salão onde ficam os carrões, bem… nenhum.

A bailarina Naiane Rosa me disse que não consegue evitar entrar nos eventos e festas que frequenta e observar quantos negros estão ali além dela. Ela diz que sempre constata que nenhum — se houver, estão a servindo. No prédio de um bairro chique de São Paulo onde ela vive, as vizinhas brancas param na porta esperando que ela segure o portão para elas passarem. No elevador, perguntam em que andar ela trabalha. Naiane tem uma carreira de sucesso e é lindíssima. Ela conta que quando é olhada na rua, as pessoas dizem que é porque ela é bonita. “Mas eu sei reconhecer o olhar de racismo”, ela fala. Eu arrisco dizer que o olhar quer dizer: mas como essa preta se atreve a ser assim tão bonita?

Talvez você só tenha lido esse texto até aqui porque eu sou branca. Se o texto fosse do Rodolfo, da Nathália, da Débora, do Júlio, do Diego ou da Naiane, você acharia chato. É só mais um negro reclamando de racismo no Brasil, não é? No dia em que realmente pudermos ouvi-los, quem sabe, depois de um tempo, não haverá mais negro reclamando, nem racismo. Aí o Rodolfo vai poder falar só de futebol que, aliás, é o assunto que ele mais gosta.

Eu só estou aqui dizendo o óbvio.

É utópico, é distante. Mas é nesse mundo que eu e você queremos viver, eu acho. Por isso, é urgente.

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