A história de Dona Ligória e muitas outras mostra que a agroecologia precisa ser encarada como solução poderosa e inovadora para fortalecer os sistemas alimentares
Compartilhado de Projeto Colabora
(Ana Carolina Morett*) – No mês do Meio Ambiente, a ActionAid segue mobilizada com suas parcerias na sociedade para frear retrocessos determinantes para a piora da crise climática no Brasil e no mundo. São muitas as ameaças recentes, como decisões do Congresso brasileiro que esvaziam os Ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas e trazem consequências graves à defesa de direitos, da nossa biodiversidade e do desenvolvimento sustentável do país. Atualmente, no mundo, duas em cada cinco pessoas vivem em situação de risco diante da crise climática segundo o IPCC, e já são mais de 3 bilhões de seres humanos – a maioria meninas e mulheres dos países do Sul Global – que lutam diariamente contra os efeitos de um clima cada vez mais hostil. Esse é o caso de Dona Ligória, quem conheci há pouco mais de três anos no semiárido paraibano.
Em 2019, fiz minha primeira visita ao Polo da Borborema, região em que milhares de agricultores familiares contam com apoio da AS-PTA, organização parceira, para manterem e expandirem sua produção agroecológica – que convive com o meio ambiente de forma sustentável, preservando sementes nativas e diversificando o cultivo sem uso de venenos. Estive lá acompanhando um vasto grupo de doadores da ActionAid que puderam conhecer de perto as histórias de quem bota a mão na massa em defesa dessa prática de agricultura, inclusive a de Ligória, cuja vida foi transformada nos últimos dez anos. Antigamente, ela enfrentava muitas dificuldades para produzir alimentos para subsistência e para gerar renda, pois não tinha acesso à cisterna nem a formações técnicas para aprimorar seu cultivo e lidar com os desafios climáticos da região, como a maior irregularidade das chuvas. Ela também teve que encarar a perda de produções devido aos impactos de monocultura industrial no ar, água e solo da região. O município em que vive tem cerca de 33 mil habitantes e, na falta de emprego, sua única filha foi morar em outra cidade. Mas, conforme a agricultora estreitou laços com a AS-PTA e com a ActionAid, conseguiu ter acesso à água e aprimorar seus saberes com formações técnicas, conquistando maior autonomia financeira ao fortalecer seu quintal produtivo. Tudo isso de forma sustentável e em convivência harmônica com o semiárido.
Aquela não era a primeira vez que eu visitava agricultoras agroecológicas, mas talvez por eu já conhecer previamente mais a fundo a história de Ligória e de sua neta, Keysse, por vídeos, textos e fotos, e de envolver também presencialmente as pessoas que contribuem mês a mês com nosso trabalho, aquele encontro tenha ganhado mais algumas camadas especiais para mim. A história e as conquistas de Ligória representavam ali, ao vivo, o resultado de um esforço individual e coletivo de longo prazo, simbolizando também as outras agricultoras presentes naquela ocasião e as milhares de mulheres que estão no mesmo caminho que elas, ao nosso lado, em 13 estados.
Apesar de serem as grandes responsáveis pela produção para subsistência e da venda de comida saudável e produzida de forma sustentável no país, as agricultoras familiares têm pouco espaço na gestão de terras e na participação das decisões dentro e fora de casa. Assim, tanto para produzir quanto para vender seus produtos, precisam encarar muitos desafios. Alguns vêm do clima, como a desertificação do solo e a irregularidade das chuvas, ou a ausência de melhores condições para plantar, colher e vender sua produção. Outros, vêm da própria sociedade: machismo, exclusão social, preconceito e diversas formas de violência. De acordo com o Censo Agropecuário 2017 (IBGE), os homens comandam a maior quantidade de estabelecimentos agrícolas (87,32%) e estão presentes em áreas maiores (81,70%). Está no Nordeste a maior parte de estabelecimentos dirigidos por mulheres (57%), e a região concentra ainda o maior percentual de estabelecimentos dirigidos por mulheres pardas (61%) e pretas (24%) e melhores condições legais da terra.
Este ano, após a pandemia que nos desafiou tanto para seguir adiante com nosso trabalho, pude voltar a visitar os projetos e participar presencialmente de diversas iniciativas da ActionAid. Para minha grata surpresa, me reencontrei com Dona Ligória, que protagonizava um intercâmbio de práticas agroecológicas e recebia agricultoras de outra região do país para mostrar quais técnicas de produção vem utilizando, quais tecnologias de acesso à água tem implementado, que caminhos vem seguindo e que articulações realizando junto às organizações para enfrentar ameaças da monocultura industrial em suas terras, além de boas conversas sobre desafios gerais enquanto mulher do campo. Ligória estava entre as agricultoras que puderam resistir e enfrentar a pandemia com dignidade, e segue até hoje defendendo o território em que vive e a agricultura na qual acredita.
Esse reencontro me fez refletir sobre como são variadas e complexas as causas da pobreza, da desigualdade, das injustiças sociais. Uma dessas raízes está em modelos fracassados em que o país e o mundo seguem insistindo. É sabido que os países precisam buscar formas de desenvolvimento econômico, mas será mesmo inviável pensar em alternativas a um modelo monocultor e agroexportador que é um dos grandes emissores de gases de efeito estufa; que diminui o acesso à terra a produtores de comida de qualidade, variada e sem veneno; que coloca em risco a biodiversidade e que comprovadamente piora a crise climática?
As histórias de Dona Ligória e de tantas outras milhares de mulheres da terra a que a ActionAid e suas organizações parceiras apoiam mostram que é mais que viável: é necessário. A agroecologia precisa de investimento e ser encarada como solução poderosa e inovadora para fortalecer a resiliência dos sistemas alimentares aos impactos das mudanças climáticas. Com essa prática, as famílias agricultoras se beneficiam de aumentos na produção, na renda e na segurança alimentar enquanto protegem o meio ambiente.
É preciso investir em formas sustentáveis e socialmente justas de produção de alimentos, pois um país que celebra a fama de “celeiro do mundo” enquanto 33 milhões de pessoas passam fome e seus biomas seguem sofrendo níveis altíssimos de desmatamento não pode estar no caminho certo. Neste mês do Meio Ambiente, celebremos Dona Ligória e as demais mulheres da terra que nos apresentam novos caminhos.
*Ana Carolina Morett é jornalista, especialista em Conteúdo e Relacionamento com Imprensa na ActionAid