O que é o ideal: um Juiz Robin Hood ou um Juiz Xerife?

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Por Átila da Rold Roesler, Justificando – 

– “Pergunta sempre a cada ideia: a quem serves?”

Bertold Bretch

Todos conhecem a história de Robin Hood de vários livros e filmes, festejado na Inglaterra como herói nacional e conhecido como o “príncipe dos ladrões”.Conta uma das lendas que após servir como arqueiro durante anos no exército do Rei Ricardo Coração-de-Leão, Robin retorna para casa depois de uma Cruzada malsucedida. Ao chegar, encontra seu feudo devastado pela tirania dos regentes devido ao confisco da maior parte da produção como tributo, além da proibição da caça como sustento ao homem comum. Com o povo na miséria e passando por extremas dificuldades, Robin e seus ex-companheiros de armas começam a roubar de volta os impostos coletados pelo xerife de Nottingham atacando os comboios do Rei na Floresta de Sherwood[1].

Comecei a escrever esse texto após ler um comentário de um colega enaltecendo a suposta “imparcialidade dos juízes” e logo lembrei de duas matérias que foram publicadas na imprensa relacionadas a esse tema. A primeira reportagem, mais antiga, denegria um “juiz Robin Hood”[2], em claro tom depreciativo, sem o devido contraponto, apenas ancorada por comentários de especialistas comprometidos com interesses econômicos do capital e que rendeu até mesmo um artigo de desagravo ao Magistrado[3]. A outra matéria que referi acima, publicada na imprensa mais recentemente, enaltecia um “juiz linha dura”[4], um “juiz xerife”, festejado pela comunidade local por sua rigidez na aplicação das leis e pelo modo severo de julgar e decidir as questões que lhe eram afetas.




Não questiono aqui o direito à liberdade de expressão da imprensa ou de qualquer pessoa (juízes, inclusive), entretanto, proponho fazer uma breve reflexão sobre o discurso da “imparcialidade dos juízes”, a ideologia e outras questões que influenciam nas decisões judiciais. Ao refletir sobre o tema, se faz necessário indagar a respeito de quais critérios norteiam os julgamentos no Poder Judiciário. Para começar, qual é a diferença entre imparcialidade e neutralidade? Será que ao decidir o juiz pode se afastar da lei? O que é norma jurídica? Qual é a relevância dos princípios e valores inscritos na Constituição Federal? Qual deveria ser o conceito de “justiça” mais adequado: o de Robin Hood ao retomar o que é do povo ou do Xerife de Nottingham em obedecer à ordem de confisco? Um juiz progressista ou um juiz linha-dura? Um juiz de esquerda ou um juiz de direita? Talvez fosse melhor um juiz do “centrão”? Ou será que Poder Judiciário e Política jamais se encontrariam pela teoria da separação de poderes concebida por Locke e depois idealizada por Montesquieu? Será que alguém acredita que algum juiz seja absolutamente neutro e imparcial? Sim, há quem acredite.

Parafraseando meu amigo Gerivaldo Neiva: “a imparcialidade dos juízes é um sentimento que permeia muito forte no senso comum. Para a opinião púbica em geral, o juiz de direito é uma figura alheia à realidade, protegido por uma bolsa que não lhe permite emitir opiniões e que seus julgamentos são resultado de uma intepretação absolutamente neutra de interferências mundanas. O juiz é quase como um santo na terra. Talvez vindo de marte ou outro planeta para nos dizer, de forma mais imparcial possível, o direito de cada um”[5]. Não é que a imparcialidade seja algo indesejável, mas o conceito dessa característica que supostamente deveria ser ínsita aos juízes está equivocado. A definição de imparcialidade no sentido de “tratar igualmente as partes” é insuficiente para se obter um julgamento justo porque não leva em consideração a neutralidade do julgador. Ocorre que cada indivíduo traz em si uma compreensão de mundo e de valores subjetivos obtidos em sua vida. Em suma, ninguém é absolutamente neutro, mas fruto de suas experiências passadas, crenças, de sua formação familiar, comunitária, acadêmica, cultural, enfim, do meio social em que vive ou do meio social do qual se desconectou.

Talvez a idolatrada imagem de Themis, a dama cega da justiça, traga um simbolismo equivocado ou quiçá seja uma mera ilusão para que os tolos acreditem nesse falso ícone de imparcialidade. Afinal, que tipo de sociedade realmente desejaria um juiz absolutamente neutro, afastado de tudo e de todos, alheio à realidade social e econômica do mundo em que vive? Ora, para ser imparcial, no sentido dogmático do termo, o juiz deveria compreender todo o substrato ideológico do sistema econômico vigente na sociedade, portanto, não deveria “vendar os olhos” ou adotar a máxima “o que não está nos autos não está no mundo”[5]. Ao contrário, para se chegar à imparcialidade é necessário não ficar neutro frente aos fatos que permeiam a realidade, compreender a ideologia, ter sensibilidade social, entender as injustiças estabelecidas pelo sistema e, dentro dessa compreensão, adotar uma postura imparcial como critério de julgamento.

Ao assumir que “neutralidade” é um conceito etéreo e que a correta compreensão de “imparcialidade” vai muito além do dogmático artigo 139, inciso I, do Código de Processo Civil, passa-se a adotar uma postura mais comprometida com princípios e valores fundamentais construídos ao longo da história da humanidade através de lutas e conquistas. Necessário conhecer a história, a filosofia, a sociologia, a criminologia, a antropologia e a ideologia para, afinal, compreender e aplicar o direito. Por isso, é que se deve refletir se de fato queremos um juiz que represente a figura mitológica de Themis ou um juiz que esteja preocupado com o objetivo fundamental de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, dedicado a “promover o bem comum”, a “reduzir as desigualdades sociais e regionais” e comprometido com a defesa incondicional do Estado Democrático de Direito. Do contrário, qual é a legitimidade democrática do Poder Judiciário e a quais interesses ele serve?

Átila da Rold Roesler é Juiz do Trabalho na 4ª Região e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho e em Direito Processual Civil. Pós-graduando em Sociologia. Foi juiz do trabalho na 23ª Região, procurador federal e delegado de polícia civil. Publicou os livros: Execução Civil – Aspectos Destacados (Curitiba: Juruá, 2007) e Crise Econômica, Flexibilização e O Valor Social Do Trabalho (São Paulo: LTr, 2015). Autor de artigos jurídicos em publicações especializadas. Professor na pós-graduação na UNIVATES em Lajeado/RS e na FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do Rio Grande do Sul.

[1] Na verdade, essa versão da lenda de Robin Hood é bem mais complexa do que isso, envolve uma iminente invasão francesa à Grã-Bretanha, a influência nefasta da Igreja, a falta de legitimidade do Rei João-Sem-Terra, os interesses da nobreza da época por leis tributárias mais justas e, é claro, um tórrido romance. Mas o ponto não é esse.
[2] http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/900/noticias/o-juiz-robin-hood-m0136646.
[3] http://www.anamatra.org.br/artigos/e-quem-ser-o-xerife-de-sherwood-05454317224635107.
[4] http://www.diariodaregiao.com.br/cidades/juiz-evandro-pelarin-negocia-implanta%C3%A7%C3%A3o-do-toque-de-recolher-em-rio-preto-1.385423 e http://politicaeafins.com.br/?p=16482.
[5] http://gerivaldoneiva.jusbrasil.com.br/artigos/313081109/juiz-de-direito-nem-boca-da-lei-nem-xerife.
[6] “Quod non est in actis non est in mundo”.

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