Vestido de Papai Noel, com um rodinho numa mão e uma garrafa de produto de limpeza na outra, Gleidson Oliveira Lima limpa para-brisas e janelas de carros em troca de moedas no centro de São Paulo.
Por Thais Carrançade, compartilhado BBC News
Aos 31 anos, o baiano vive com a esposa e a filha de 4 anos em uma barraca de camping coberta por uma lona embaixo do Elevado João Goulart, mais conhecido como Minhocão.
“Nunca roubei, nunca matei, nunca peguei nada de ninguém. Sou analfabeto, não sei ler nem escrever”, conta Gleidson, que mora nas ruas do centro há cinco anos.
“Vamos passar o Natal aqui mesmo. Infelizmente, nós que somos moradores de rua não temos para onde ir, mas muita gente ajuda a gente. Minha esposa vende bala no farol e, graças a Deus, não nos falta nada”, diz o limpador de vidros
Apesar de seu otimismo e gratidão pela ajuda que recebe, evidentemente faltam a Gleidson, sua esposa e filha muitas coisas.
A família dele é uma de milhares que devem passar este Natal e a virada do ano nas ruas ou em abrigos e ocupações precárias em todo o Brasil. O número é crescente, em meio ao desemprego elevado e perda de renda que, durante a pandemia de Covid-19, têm afetado principalmente a parcela mais pobre e informalizada da população.
Segundo pesquisa CNT/MDA divulgada em dezembro, 62% dos brasileiros dizem perceber um aumento do número de pedintes e de moradores de rua em suas cidades.
Conforme dados do Ministério da Cidadania, havia 142 mil famílias brasileiras em situação de rua registradas no Cadastro Único para programas sociais do governo federal em setembro deste ano, 34 mil delas somente na capital paulista.
Em seu estudo mais recente sobre o tema, o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) estimou a população de rua brasileira em 222 mil pessoas em março de 2020. O instituto alertava, no entanto, que a tendência do número era de alta devido à crise econômica acentuada pela pandemia.
O padre Júlio Lancellotti, que atua há mais de 30 anos junto à população em situação de rua de São Paulo, relata haver um aumento das famílias vivendo nas ruas no período recente — normalmente, a população de rua é formada em sua maioria por homens sozinhos.
“Na convivência com a população de rua, a gente percebe claramente o aumento de grupos familiares, de mulheres com crianças e de jovens — pessoas que estão longe de seus grupos familiares buscando algum trabalho”, diz o pároco da Paróquia São Miguel Arcanjo, localizada na Mooca, zona leste de São Paulo.
“Isso é resultado da crise econômica que estamos vivendo, agravada pela questão da pandemia, a inadimplência, o desemprego, a inflação alta, a impossibilidade de pagar aluguel. Todas essas questões que são estruturais e conjunturais do país”, afirma o religioso.
‘A gente não está na rua porque quer’
Foi a falta de oportunidades em Porto Alegre que fez a família de Marlene Amaral, de 36 anos, e José Eduardo, de 24, chegar a São Paulo com dois de seus três filhos.
Na cidade há uma semana e meia, a família atualmente divide um quarto em um hotel no centro da cidade. Mas, com dificuldades para pagar a diária de R$ 65, o casal espera conseguir em breve uma barraca. Com isso, a pequena família deve passar o fim de ano na rua.
“No Sul estava complicado, ele [José Eduardo] é malabarista e lá é ruim para trabalho. Aqui [em São Paulo] está sendo ruim também, por isso estamos trabalhando com venda de balas e paçocas, cada um com uma das crianças para podermos fazer um dinheiro. Está bem complicado”, contou Marlene à BBC News Brasil, na Praça da República.
Vivendo apenas com o dinheiro dos doces e uma pensão a que Marlene tem direito por ser viúva de seu primeiro casamento, a família tem se alimentado com doações.
“Queremos comprar uma barraca para conseguir juntar um pouco mais de dinheiro para ir embora para Belo Horizonte”, conta a gaúcha.
“A gente não está na rua porque quer, é porque está difícil. Estamos indo para BH porque lá a gente consegue uma moradia mais barato”, diz José Eduardo.
Críticos a Bolsonaro, ele e Marlene dizem ter esperança de que as eleições de 2022 tragam mudanças.
“Se a inflação diminuir, se a gente puder ir ao mercado e as coisas estiverem mais baratas — porque a gente vai no mercado todo dia, a gente que não tem onde morar não compra coisa para o mês, se não estraga. Acho que, mudando o governo, isso aí vai mudar, pelo menos para a gente conseguir se alimentar, que é o básico”, afirma o malabarista.
‘Auxílio emergencial ajudou muita gente’
Jaqueline Rodrigues da Silva, de 27 anos e mãe de uma menina de 3 anos, com quem mora num hotel social da Prefeitura, vê com bons olhos o atual governo por um motivo principal: o auxílio emergencial que ela recebeu neste ano e no passado.
Com valor maior do que o Bolsa Família a que ela tem direito, Jaqueline afirma que o auxílio (que em 2020 variava de R$ 600 a R$ 1.200) fez uma diferença grande na sua vida.
“Esse auxílio ajudou bastante o pessoal, só não gostei que quem pegava o auxílio emergencial não pega esse Auxílio Brasil, só quem tem Bolsa Família. Podia dar para quem necessita também”, sugere.
A crítica de Jaqueline tem base: segundo o governo, o novo Auxílio Brasil deve atender 17 milhões de pessoas, zerando a fila do Bolsa Família. O número, no entanto, é inferior aos 39 milhões de famílias que receberam o auxílio emergencial em 2021.
A paulista de Osasco diz que não votou em Jair Bolsonaro (PL) em 2018 e agora ainda está decidindo em quem votar em 2022. Ela gostaria que o deputado federal André Janones (Avante-MG) — que foi bastante atuante na aprovação do auxílio emergencial e tem presença forte nas redes sociais — fosse candidato.
Jaqueline está no hotel social há 15 dias, antes, morou na rua. “Fui morar na rua por briga familiar, tem um mês. Eu não aguentei, saímos eu, meu marido e minha filha”, conta.
De acordo com o Censo da População em Situação de Rua 2019, realizado pela Prefeitura de São Paulo, conflitos familiares são a principal razão para as pessoas irem parar nas ruas, apontada por 40,3% dos entrevistados, seguida por dependência química (33,3%), perda de trabalho (23,1%) e perda de moradia (12,9%).
Uma nova edição do Censo paulistano da população de rua estava prevista para 2023, mas foi antecipada devido à pandemia e está sendo realizada neste momento. A coleta de dados foi iniciada em outubro e os primeiros resultados devem ser divulgados ao final de janeiro de 2022, segundo a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social.
A edição de 2019 contabilizou 24,3 mil pessoas em situação de rua em São Paulo, sendo 12,6 mil vivendo em vias públicas e 11,7 mil em centros de acolhida.
‘Ele tentou me matar, então saí da minha cidade’
Marcela*, de 25 anos, mãe de três filhos e grávida de 8 meses do quarto, mora há três meses numa ocupação precária na região central de São Paulo.
“Era uma garagem de ônibus, onde invadiram e fizeram os barracos de madeira, acho que ali vivem hoje umas 15 famílias, todas com crianças”, contou à BBC News Brasil, enquanto vendia balas acompanhada dos filhos em uma grande avenida.
O nome dela foi trocado pois Marcela veio parar em São Paulo fugindo de um ex-companheiro que a agredia. “Ele não aceita a separação, eu vivi muita violência doméstica, ele tentou me matar, então eu resolvi sair da minha cidade por esse motivo”, conta.
Após um período morando na rua, ela conseguiu um espaço na ocupação. Um cômodo, que ela divide com as três crianças, que em breve serão quatro.
“É um barraco, tem uma cama, uma cômoda e um sofá. E só, mais nada. Eu não cozinho porque não tenho fogão nem geladeira, então eu como na rua, de doação ou quando eu consigo, compro um marmitex”, relata.
Déficit habitacional crescente
Apesar de não morar mais na rua, Marcela faz parte de um outro número crescente: o do déficit habitacional brasileiro.
Segundo a Fundação João Pinheiro, instituição de pesquisa ligada ao Governo de Minas Gerais, em 2019, o déficit habitacional no país era de 5,9 milhões de moradias.
Esse é o número mais recente disponível para o indicador, que tem como base a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Desse total, 51,7% são domicílios com renda inferior a três salários mínimos que gastavam mais de 30% dela com aluguel; 25,2% são habitações precárias — aquelas improvisadas em carros, barcos, barracas ou casas sem parede de alvenaria — e 23,1% são domicílios com coabitação, quando duas ou mais famílias convivem juntas num mesmo ambiente.
O barraco de madeira na antiga garagem de ônibus onde vive atualmente Marcela se enquadra no segundo caso.
“São famílias que não conseguem ter uma moradia adequada, não conseguem ter acesso ao mercado imobiliário, porque não têm renda suficiente, não têm trabalho, não têm acesso a crédito”, diz Ana Maria Castelo, coordenadora de Projetos da Construção no Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas).
“E sabemos que, nesses dois anos da pandemia, a história foi muito ruim. As famílias foram severamente afetadas, principalmente as de menor renda e as que já viviam na informalidade, então a possibilidade de termos esses números crescentes é real”, afirma a professora, sobre a provável tendência de alta do déficit habitacional em 2020 e 2021.
Para Castelo e também para o padre Júlio Lancellotti, o problema da moradia é agravado pelo desmonte das políticas públicas para o setor, com praticamente nenhuma habitação entregue pelo governo nos últimos anos para a chamada Faixa 1 do antigo programa Minha Casa, Minha Vida, rebatizado pela gestão Jair Bolsonaro como Casa Verde e Amarela.
Destinada a famílias com renda de até R$ 1,8 mil, a Faixa 1 era financiada a partir de recursos do Tesouro, que se tornaram escassos diante da crise fiscal e do limite imposto pelo teto de gastos.
“As políticas existentes hoje são para pessoas que têm capacidade de endividamento, quem não tem essa capacidade, como a população de rua, não é atingida”, diz Lancelotti.
“Estamos falando de uma parcela da população que vive num nível de vulnerabilidade muito grande. Hoje não há atendimento para esse público na política habitacional”, avalia Castelo.
“A forma de atingir esse público é com aluguel social e renda mínima, pois são pessoas que não têm renda e, até se você der uma moradia, elas terão dificuldade de arcar com os custos. Então é preciso uma política social abrangente que dê conta dessa situação.”
O Ministério do Desenvolvimento Regional informou à BBC News Brasil que, desde 2019, mais de 1,1 milhão de moradias foram entregues para pessoas de diversas faixa de renda.
Ainda segundo a pasta, desde o lançamento do Casa Verde e Amarela, em agosto de 2020, cerca de 45 mil unidades da Faixa 1 do programa foram entregues a famílias de baixa renda. O ministério diz ainda que a modalidade de locação social do programa, anunciada por ocasião de seu lançamento, continua “em estudo”.
A Prefeitura de São Paulo, por sua vez, informou que acaba de lançar um projeto inédito de PPP (parceria público-privada) para oferta de moradia e acolhimento para população em situação de rua.
Segundo a prefeitura, o projeto prevê a implantação de 1.747 unidades, distribuídas em 15 empreendimentos, que beneficiarão mais de 3,7 mil pessoas.
A gestão municipal destacou também uma série de ações que tem realizado para o atendimento da população em situação de rua em meio à pandemia, como a distribuição de cestas básicas, kits de higiene e limpeza, refeições prontas e água.
Eleições e sonhos para 2022
E o que Marcela espera desse Natal?
“Para ser bem sincera, eu não sei dizer, mas espero coisa boa, porque Deus nunca me abandonou. O importante para mim é não faltar o que comer, mas esse Natal vai ser diferente, por que eu não vou passar com meus parentes, com meus pais”, lamenta ela.
Para o próximo ano, além da chegada do quarto filho, Marcela sonha com uma casa melhor.
“Se Deus quiser — e ele quer — eu vou conseguir um lugar melhor, porque ali [na ocupação] não é um lugar adequado para um bebê recém-nascido, tem muito rato. Primeiro de tudo é ter um lugar para viver com meus filhos em segurança e depois, quando meu bebê estiver um pouco mais crescido, arrumar um trabalho”, deseja a mãe de família para o próximo ano.
Marcela diz que pretende com certeza votar nas eleições de 2022.
“O que a gente precisa mesmo é de educação, segurança, as pessoas precisam de um lugar para morar. Agora com Bolsonaro, a coisa melhorou quando aumentou o auxílio — nossa, ajudou muito!”, diz ela, que recebeu em 2020 os R$ 1.200 destinados a mães chefes de família.
Com a redução do valor em 2021, no entanto, as coisas ficaram “bem piores”, diz ela. Assim, Marcela ainda não sabe em quem vai votar no próximo ano. “Tem que ver as propostas, o que vão oferecer para a gente de melhor”, afirma.
Gleidson Oliveira Lima, que limpa vidros vestido de Papai Noel, enquanto vive com a família embaixo do viaduto, diz que nunca votou. “Eu não tenho documento nenhum”, explica.
Ainda assim, ele não poupa críticas à atual gestão federal.
“Depois que o Bolsonaro entrou, o Brasil mudou”, afirma. Para melhor ou para pior? “Para pior, piorou para todo mundo. O Lula ajudou bastante a gente. Eu dou valor para o Lula.”
*Nome fictício por se tratar de uma vítima de violência doméstica.