Por Gabriel Landi Fazzio*, no site do Crivelli Advogados –
O primeiro ministro francês, Manuel Valls, anunciou na última terça-feira (05/07), que o governo recorrerá ao artigo 49.3 da Constituição, utilizando os poderes especiais previstos que permitem a aprovação de medidas legislativas sem votação pelo parlamento. O que justificaria uma medida de força tamanha, diante da incapacidade de Valls de unificar seu própria partido na votação parlamentar?
Em 17 de maio de 2016 iniciou-se, na França, a maior onda de greves e protestos em décadas. Centenas de milhares de pessoas foram às ruas; piquetes foram erguidos em dezenas de estradas; paralisações laborais atingiram diversos ramos da indústria, ferroviais, aeroportos, portos e usinas nucleares, responsáveis por 75% da energia consumida pelo país. O motivo de tal convulsão social é justamente aquele que, na visão do governo, faz jus à invocação do Artigo 49.3 da Constituição: o projeto de reforma trabalhista que carrega o nome da atual Ministra do Trabalho, Myriam El Khomri.
Na França, desde a Lei Aubry, de 1998, a jornada de trabalho semanal é de 35 horas. Todo trabalho que ultrapasse tal limite passa a ser remunerado com adicional de 25%, até a 8a hora diária, após a qual o referido adicional é majorado para 50%. Não existe a carteira de trabalho, apenas diferentes espécies de contratação. Há cerca de 30 diferentes contratos, com minuciosas distinções de uma categoria profissional para outra. De modo geral, contudo, esses contratos podem ser agrupados em duas espécies: os de prazo indeterminado (chamados CDI) e os de prazo determinado (CDD). No primeiro caso, as condições exigidas para a demissão de um empregado são bastante restritas, assegurando o que os franceses tradicionalmente chamam de “direito ao trabalho”. Mas, apenas em 2015 [2], 87% dos novos contratos de trabalho foram firmados sob o regime de prazo determinado, o que representa um avançado grau de precarização das relações de emprego. Sob os efeitos da crise capitalista, hoje a França se encontra em um quadro de mais de 10% de desemprego.
É esse o contexto no qual o governo de Valls e Hollande apresenta a Lei El Khomri. Sob o argumento de “lutar contra o desemprego” através de conferir “mais flexibilidade às empresas” [3], o projeto busca facilitar a suspensão temporária do contrato de trabalho (o chamado lay off), reduzir o adicional de horas extras a um “mínimo” de 10% e desonerar e facilitar as demissões no regime de CDI. Contudo, o cerne do projeto guarda relação com a ideia que há tempos assombra os juslaboralistas brasileiros: o chamado “negociado sobre o legislado”, ou seja, a possibilidade do estabelecimento de condições menos favoráveis aos trabalhadores do que as previstas em lei, conquanto haja a este respeito negociação coletiva entre empregador e empregados. O crème de la crème, no caso da contrarreforma francesa, é que, no contexto da pluralidade sindical do país, a Lei El Khomri prevê a possibilidade de tal negociação coletiva ser feita bastando o consentimento de sindicatos que representem 30% da categoria. Em alguns casos, se aventa a possibilidade de tal negociação dispensar os próprios sindicatos, sendo feita consulta diretamente aos trabalhadores na base de cada empresa. Assim, flexibiliza-se também a noção da legitimidade do sindicato mais representativo.
Apenas no tocante à jornada de trabalho, por exemplo, práticas deste tipo já são recorrentes em toda a Europa: no Reino Unido, a jornada máxima de 48 horas semanais pode ser ampliada por meio de acordo coletivo; na Polônia, é possível o estabelecimento de uma jornada de até 13 horas diárias por meio de barganha coletiva; na Alemanha, sequer há jornada máxima legal, sendo esta estabelecida caso a caso pelas negociações entre sindicatos e empresas.
Alegar o desemprego como fundamento para tais contrarreformas é esconder a raiz da questão, ou seja, a própria causa do desemprego: a luta dos mercados para reverter a tendência à queda da taxa de lucro [4] que está na base da crise capitalista escancarada em 2008 e que cuja superação ainda não se vê no horizonte. Duas alternativas mais óbvia se colocam: por um lado, aumentar a produtividade do trabalho; por outro, aumentar a intensidade do trabalho. Ora, no contexto de uma profunda crise, fenômeno que sempre traz a marca da superprodução, e justamente décadas após um dos maiores saltos tecnológicos da história humana, que permitiram o avanço da chamada “flexibilização produtiva”, o caminho escolhido pelos empresários é inequívoco: extrair de tais nova tecnologias todo seu potencial em termos da reorganização das próprias relações de produção, solapando as bases jurídicas do fordismo, o direito do trabalho, e permitindo uma intensificação dos ritmos e jornadas de trabalho. E, nos tempos da acumulação flexível, a estabilidade trabalhista soa como uma abominação aos mercados, diante do papel das altas taxas de rotatividade na manutenção dos baixos salários e das formas mais “versáteis” de contratação, como o britânico contrato “zero hora” [5]. Nesse contexto, a reivindicação do direito ao trabalho não poderia soar como outra coisa senão como a reivindicação da restrição do capital aos interesses do trabalho.
Aparentemente a V República francesa tem seu calcanhar de Aquiles: o artigo 49.3 da Constituição. Se engana quem pensa que essas foram as últimas cenas da convulsão francesa. Contudo, ao menos no Brasil, são as cenas mais determinantes: se no coração republicano da Europa lançou-se mão de toda sorte de autoridade e exceção para desmontar o direito trabalhista, há de se pensar que as investidas, em nosso país, ganharão cada vez mais convicção e vigor.
[2] https://www.socialeurope.eu/2016/04/french-labour-market-reform-good-intentions-poor-delivery/
[4]http://www.seer.ufu.br/index.php/revistaeconomiaensaios/article/view/1543
Gabriel Landi Fazzio é estudante de direito e colaborador de Crivelli Advogados Associados.