‘Pensei que ia morrer quando ouvi o tiro disparado pelo segurança da deputada branca. A cena serve de metáfora para todo o povo preto, para quem o Estado brasileiro aponta armas – e aperta o gatilho’
Por Luan Araújo, compartilhada de Projeto Colabora
A deputada Carla Zambelli, cometendo crime nas ruas de São Paulo: porte ilegal de arma e ameaça a jovem negro. Reproução de vídeo
Vocês devem me conhecer só pela imagem que apareceu em vídeos na internet e na televisão no dia 29 de outubro, véspera das eleições presidenciais mais importantes da história brasileira. Um homem, preto, gordo, de bermuda, chinelo e uma camisa florida discutindo com uma deputada e depois sendo perseguido por ela e seus capangas armados por uma rua dos Jardins, bairro nobre de São Paulo.
Se você acompanhou o noticiário no dia e posteriormente, deve ter lido que sou jornalista. Aí pode ter se perguntado: “Se ele é jornalista, por que não conheço? Por que não está em um grande veículo? E por que ele falou que é pobre e periférico aos microfones de seus colegas de profissão, pedindo proteção? E como ele chegou ali, naquela situação?”
Bem, realmente sou jornalista. Entrei em uma instituição respeitada na cidade de São Paulo por causa do Prouni, criado nos governos petistas para incluir mais pessoas de baixa renda nas universidades particulares e me formei em 2012, com notas acima da média. Escrevo esse texto, aliás, no dia 21 de novembro, quando se completam 10 anos da entrega do meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC).
Se você reparou quando me formei, pode imaginar o que aconteceu no país a partir do ano seguinte. As políticas de inclusão ao povo preto dos governos petistas talvez possam ter sido insuficientes num olhar mais frio, mas deram a muitos dos meus algo que nossos antecessores nunca tiveram, nem em sonho. Eu tive. E quando me formei, imaginava ter pela frente uma carreira e um país convidativos a meus sonhos e projetos.
O que aconteceu depois daquele ano foi especialmente doloroso para pessoas como eu. Vimos aos poucos a democracia e seus direitos, ainda insuficientes, irem pelo ralo. A movimentação que se iniciou em 2013 resultou em um golpe institucional em 2016 e na eleição de um ser inclassificável de extrema-direita em 2018, com claro viés racista, misógino, homofóbico e higienista. Para alguém preto, como eu, que provou de certa forma o gosto de quase poder estar em um lugar digno, foi um inferno.
Nestes 10 anos, pulei de emprego em emprego, sempre recebendo menos do que meus amigos brancos que se formaram comigo. Vi meu poder de compra minguar. Vi a situação dentro da minha casa, onde ainda moro com a minha mãe, que é viúva, ficar ainda pior.
Pensava que em 2022, no cenário que pintava para mim quando me formei, eu teria casa própria, carro, essas coisas que a classe média valoriza tanto e diz que você deve ter. Cheguei a este ano sem nada disso, só com a frustração de insucessos seguidos. Uma garrafa quase cheia, perto de transbordar.
E aí vem aquele 29 de outubro, o dia em que minha vida mudou de forma drástica. Encontrar ali, num momento tão tenso e com tantas derrotas e medos, alguém que era e é um dos rostos de tudo que ferrou com a minha vida e de tantos dos meus, foi muito forte. E tudo o que aconteceu depois me assustou muito.
A cena serve de metáfora para todo o povo preto, para quem o Estado brasileiro aponta armas – e aperta o gatilho todos os dias. Pensei que ia morrer quando ouvi o tiro disparado pelo segurança da deputada branca. Esperei por outros tiros, enquanto corria e gritava, pedindo ajuda. Senti ainda muita solidão, porque vi as pessoas virando as costas e fechando as portas. Estava com um amigo branco e ninguém foi para cima dele.
Já estive sob a mira de armas algumas vezes na vida – e sempre foi o Estado que apontou. Tomo um “enquadro” da polícia por ano, mais ou menos. Agora, foi a deputada branca. Só depois fui me dar conta de que a criminosa, ali, era ela, que não podia estar portando uma arma – e muito menos apontar para qualquer pessoa – por determinação da Justiça eleitoral. Só lembrei quando estava refugiado, a salvo das pistolas dela e dos seguranças.
Talvez, pela repercussão, ainda dê em alguma coisa contra ela. O processo está correndo, acompanho via meus advogados, mas não quero condicionar minha vida a isso. Tenho raiva não apenas dela, mas dessa gente toda, pelo que eles tiraram de pessoas como eu.
Tenho consciência de que sou o elo mais fraco da corrente, pela minha cor, minha classe social, minha carreira que não é de muito sucesso. E sei que minha carreira e minha vida seguirão, ainda mais insalubres. Mas só queria, neste pequeno devaneio, explicar como aquele 29 de outubro foi construído por várias mãos desde o dia em que me formei. Uma grande obra coletiva.
Digo que o que aconteceu é uma boa chance de eu contar uma boa história, sonho de qualquer jornalista. Infelizmente, para mim, a melhor história que tenho para contar é de um preto periférico e com uma mãe-solo que foi ameaçado com uma arma por uma pessoa branca da elite. A mais normal deste país.