Projeto de Niemeyer e equipe. Consultoria de Le Corbusier. Azulejos de Portinari. Esculturas de mestres modernistas. Tudo isso desapareceria no leilão de prédios públicos comandado por Paulo Guedes. Liminar da Justiça brecou atentado
Por ArchTrends, compartilhado de Outras Palavras
Publicado 02/02/2022 às 17:57 – Atualizado 02/02/2022 às 18:09
Certamente, o Palácio Gustavo Capanema é um marco da nossa arquitetura moderna.
Localizado no Rio de Janeiro, ele também é conhecido por diversos outros nomes, como Edifício Capanema, Edifício Gustavo Capanema (seu nome atual) ou Ministério da Educação e Cultura (MEC), em referência ao seu uso original.
Projetado por uma equipe notável, que contava com profissionais como Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, além de consultoria de Le Corbusier, o prédio faz parte da nossa história e cultura. Apesar disso, está listado entre os possíveis imóveis que serão vendidos pelo Governo Federal.
Quer conhecer essa construção icônica e entender a importância de sua preservação? Continue a leitura!
História do Palácio Gustavo Capanema
O Palácio Capanema foi construído entre 1937 e 1945, com inauguração realizada por Getúlio Vargas, então presidente.
Foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1948 e é um dos principais marcos da arquitetura moderna brasileira.
A criação do MEC aconteceu no governo de Getúlio Vargas, com seu projeto de centralização da máquina pública. Lembrando que, na época, o Rio de Janeiro era a capital do Brasil.
O nome do prédio é uma homenagem ao ministro Gustavo Capanema, um intelectual que era ligado a inúmeros artistas vanguardistas e tinha em mente um novo projeto cultural para o país.
Ele buscava se apropriar das novas estéticas internacionais, como o modernismo, para refletir a busca pelo progresso e pela modernização do Brasil.
Concurso
Nesse sentido, a arquitetura moderna acabou servindo de base para a criação do prédio. Para definir quem seria o arquiteto responsável, o governo federal optou pela realização de um concurso nacional.
Apesar da intenção de desenvolver algo moderno, o júri que deveria analisar as propostas era conservador e academicista. Por isso, escolheu o projeto do arquiteto Archimedes Memoria, que possuía um caráter monumental e historicista.
Isso desagradou fortemente Gustavo Capanema — que legitimou o vencedor e pagou-lhe o prêmio devido, mas convidou o ex-diretor da Escola Nacional de Belas Artes, Lúcio Costa, para compor uma equipe e criar outro projeto.
Equipe e participação de Le Corbusier
O time montado por Lúcio Costa contou com nomes como Carlos Leão, Ernani Vasconcellos, Affonso Eduardo Reidy, Oscar Niemeyer e Roberto Burle Marx.
A euforia dos participantes era grande, visto que muitos eram arquitetos jovens na época e desejavam projetar algo impactante, uma vez que essa era uma oportunidade única. Poucos modernistas no mundo tinham uma chance dessas.
Diante da situação, Lúcio Costa decidiu solicitar a assessoria de Le Corbusier, um dos mais importantes arquitetos do século XX, considerado o “pai” da arquitetura moderna mundial.
O loteamento escolhido para receber o prédio ficava em uma área conhecida como Quadra F. Ao analisar o plano urbanístico para o entorno, Le Corbusier percebeu que rapidamente o palácio estaria cercado de construções menos expressivas. Assim, propôs a transferência para um espaço na Avenida Beira Mar, próximo ao atual Museu de Arte Moderna.
Também revisou o projeto inicial, elaborado pela equipe de arquitetos brasileiros, que foi considerado pouco arrojado pelo francês.
Porém, a permuta de terrenos não foi aceita. Então, antes de retornar ao seu país, Le Corbusier rascunhou um projeto alternativo para a Quadra F, que acabou não sendo usado.
No lugar dele, a equipe de Lúcio Costa utilizou o estudo anterior como base. Contudo, verticalizou a perspectiva horizontal do principal bloco, adaptando-a ao espaço disponível.
Outra adaptação importante foi substituir o corredor estreito com todas as salas dispostas do mesmo lado por salas dispostas em ambos os lados de um corredor central, com divisórias de meia altura, substituindo as paredes e oferecendo melhor ventilação e flexibilidade na ocupação.
Características, diferenciais e importância histórica do Palácio Gustavo Capanema
Em 1943, o Palácio Gustavo Capanema foi eleito pelo Museu de Arte Moderna de Nova York como o prédio mais avançado do mundo em construção.
E isso não foi por acaso. Afinal, o projeto da equipe de Lúcio Costa contou com vários pontos vanguardistas.
Para desenvolver a ideia, o grupo de arquitetos se atentou aos cinco elementos de referência do trabalho de Le Corbusier: planta livre, pilotis, terraço-jardim, janelas horizontais e fachada livre.
A equipe também considerou o emprego racional dos materiais, os métodos econômicos de construção, o uso de tecnologia industrial e a linguagem formal sem ornamentos.
É justamente por esses pontos que o Edifício Capanema é considerado um marco, inaugurando a arquitetura moderna brasileira.
Para aproveitar a luz e a ventilação naturais, foram usadas lâminas horizontais móveis, situadas na fachada norte.
O sistema é chamado de brise-soleil. Ele havia sido inventado por Le Corbusier três anos antes e foi usado pela primeira vez em larga escala no Palácio Gustavo Capanema.
Outra inovação foi o curtain wall, uma fachada envidraçada orientada para a face menos exposta ao sol. Instalações, acabamentos e móveis também foram desenhados especialmente para o edifício.
Características
O prédio conta com 27.536 m² e 16 pavimentos. É formado por dois blocos, que se interceptam perpendicularmente, formando uma letra “T” invertida.
A construção vertical é suspensa por colunas de 10 m de altura. No térreo da construção horizontal fica o hall de entrada, o auditório e o salão de exposições (com extensão para o terraço verde).
No bloco vertical ficavam originalmente os escritórios do Ministério da Educação e Saúde e, depois, do Ministério da Educação e Cultura.
A implantação livre do edifício na quadra e a suspensão do seu volume vertical por meio de pilotis combinados com elementos paisagísticos diferenciados adicionam valor ao espaço urbanístico ao redor.
Artes gráficas
Um elemento muito marcante no Palácio Capanema é a integração entre arquitetura e artes gráficas.
No Salão de Conferências Gilberto Freyre estão dois importantes murais em afresco pintados por Candido Portinari: Primeira Aula do Brasil e Aula de Canto.
No Hall Nobre ou Salão Jogos Infantis há outro grande afresco do artista, que dá nome ao espaço.
Seguindo pelo hall, encontram-se outras salas nas quais estão presentes telas de mais uma série de Portinari, batizada de Os Quatro Elementos.
No antigo escritório do ministro está a tela Ar. No que pertencia a Carlos Drummond de Andrade, que foi chefe de gabinete dele, temos a Água.
Nos gabinetes ao lado estão as telas Fogo e Terra. No mesmo pavimento, mais 12 afrescos formam um grande mural e representam diferentes fases da economia brasileira.
Outro detalhe importantíssimo do Palácio Capanema que tem a assinatura de Portinari são os azulejos que o revestem externamente.
O emprego da azulejaria marcou a revalorização de um importante elemento da arquitetura luso-brasileira.
São de autoria de Portinari seis dos sete painéis — o último é assinado por Paulo Rossi — que reproduzem as mesmas tonalidades dos azulejos de Outeiro da Glória.
Aliás, Portinari teve uma ligação tão grande com o edifício que quando faleceu, em 1962, foi velado por lá.
Esculturas e paisagismo
Todos os detalhes do Palácio Capanema foram pensados para traduzir o modernismo brasileiro, inclusive as esculturas.
Celso Antônio de Menezes produziu três delas: Mulher Reclinada, em granito cinza; Maternidade, que foi, posteriormente, levada para a Praia do Botafogo; e Mulher de Cócoras, também chamada de A Índia.
Bruno Giorgi confeccionou Jovem de Pé e Adriana Janacópulos criou Mulher Sentada. Em uma das fachadas do prédio ainda está Prometeu e o Abutre, de Jacques Lipchitz.
O paisagismo foi projetado por Roberto Burle Marx.
Nos jardins térreos há canteiros que imitam ondas, com vegetação exclusivamente tropical. Lá, temos outra escultura de Bruno Giorgi, Monumento à Juventude Brasileira.
Também são de Burle Marx o terraço-jardim do mezanino e os jardins do 16º pavimento.
Por tudo isso, o Palácio Gustavo Capanema é considerado um dos prédios mais relevantes da arquitetura moderna brasileira.
Resumidamente, ele reuniu nomes importantes de várias vertentes das artes plásticas, como arquitetura, artes gráficas e escultura.
Além disso, transformou de maneira significativa o modo como as construções eram planejadas e executadas até então.
A respeito do edifício, Carlos Drummond de Andrade escreveu certa vez:
“Dias de adaptação à luz intensa, natural, que substitui as lâmpadas acesas durante o dia; às divisões baixas de madeira, em lugar de paredes; aos móveis padronizados (antes, obedeciam à fantasia dos diretores ou ao acaso dos fornecimentos). Novos hábitos são ensaiados. Da falta de conforto durante anos, devemos passar a condições ideais de trabalho. Abgar Renault resmunga discretamente: ‘Prefiro o antigo’. […] Das amplas vidraças do 10º andar, descortina-se a baía, vencendo a massa cinzenta dos edifícios. Lá embaixo, no jardim suspenso do ministério, a estátua de mulher nua de Celso Antônio, reclinada, conserva entre o ventre e as coxas um pouco da água da última chuva, que os passarinhos vêm beber, e é uma graça a conversão do sexo de granito em fonte natural. Utilidade imprevista das obras de arte”.