Por Paulo Renato Abreu do Opovo, publicado no Portal Geledés –
Neste 13 de maio, dia em que se comemora a abolição da escravatura no Brasil, o Vida&Arte questiona: afinal, a língua portuguesa é livre de racismo?
Seria a expressão “negro quando não suja na entrada, suja na saída” só um dito popular inofensivo? E “como a cor não pega, mulata, mulata eu quero o teu amor” apenas uma marchinha divertida de Carnaval? E o que dizer do trecho “Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou (numa árvore) que nem uma macaca de carvão”, escrito por Monteiro Lobato no livro Caçadas de Pedrinho? Nada mais do que uma metáfora?
No dia em que se comemora a abolição da escravatura no Brasil – data que tem como marco temporal a assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888 –, o Vida&Arte questiona: a língua portuguesa segue escrava do racismo? Palavras e expressões preconceituosas estão camufladas no nosso falar cotidiano?
“A língua portuguesa continua refletindo a cultura da humilhação diária e da desumanização da pessoa negra. A atitude racista ainda está presente entre as pessoas e as instituições”, critica Sandra Petit, coordenadora do Núcleo das Africanidades Cearenses (Nace), da Universidade Federal do Ceará. Ela, que é professora da Faculdade de Educação (Faced), afirma que a presença do racismo na língua portuguesa tem relação direta com o passado escravagista do País. “O termo negro em si não está dizendo que algo é negativo, mas a forma com a palavra é usada e o contexto acabam fortalecendo essa conotação negativa”.
Para a socióloga baiana Ângela Guimarães, o fato de o Brasil ter sido o último país do Ocidente a abolir a escravidão acabou “forjando uma nacionalidade construída na inferioridade do que não é branco”. Coordenadora do Juventude Viva, plano da Secretaria Nacional de Juventude que combate a violência física e simbólica contra jovens negros, Ângela afirma que historicamente a elite branca brasileira acabou dispersando o preconceito racial por meio da linguagem. “Piadas racistas e o uso do verbo denegrir, por exemplo, mostram que o racismo linguístico está enraizado e é usado de forma corriqueira”.
Aby Rodrigues, do Instituto Negra do Ceará (INegra), aponta que a reprodução dessas expressões acontece, principalmente, por falta de informação. “A reflexão é quase inexistente entre a população. E, com certeza, deve haver pessoas que imaginam a conotação negativa, mas que não se preocupam em parar de usá-las”. Aby conta se “incomodar bastante” com associação de negritude à difamação de alguém. “Expressões como ‘magia negra’, ‘a coisa está preta’ e ‘não sou tuas nega’, eu escuto comumente e pouco é comentado sobre a origem desses termos”, questiona.
De “sujo” a “estragado”
Autor de pesquisa sobre os significados do lexema “negro” segundo os escritores brasileiros desde o período da escravidão até a atua1idade, o professor José Lemos Monteiro coletou enunciados de mais de cem obras literárias que evidenciam que “o preconceito de cor está fortemente arraigado em nossa cultura”.
Nos estudos, o professor aposentado da Universidade de Fortaleza (Unifor) concluiu que, dentro da literatura, a negritude está associada a termos pejorativos, como: depravado, sujo, miserável, criminoso, monstruoso, condenado e estragado.
“As palavras têm um campo semântico e, com o uso, o significado vai mudando e pode chegar a dizer exatamente o contrário do que deveria ser”, destaca José Lemos. O pesquisador comenta sobre a importância de avaliar o que está por trás do que falamos. “O significado da palavra não é só o que está lá no dicionário. É um acúmulo de experiências individuais e coletivas”.
A socióloga Ângela Guimarães pondera ser preciso problematizar ainda mais a discussão sobre como a língua portuguesa pode estar perpetuando preconceitos históricos. “É importante desconstruir esse campo simbólico que vai passando de geração em geração e que é violento”.