Por Walter Falceta, jornalista, via o amigo do blog, jornalista Laurindo Lalo Leal Filho
Cresci na Igreja Católica, influenciado por vovó Carolina, uma carola muito progressista. O formidável bispo Dom Luciano queria me levar para o seminário. Não fui, porque pretendia namorar e provar os prazeres da vida secular.
Como jornalista, no entanto, passei anos cobrindo temas religiosos, em Veja, Estadão e Globo. Conheci a fundo as tensões da igreja brasileira, mapeando as diferenças entre progressistas e conservadores.
Além disso, viajei muito com João Paulo II e fiz a primeira entrevista de um brasileiro com o papa Ratzinger (Bento XVI).
Então, de modo bem didático, começo por situar a Igreja nos tempos modernos.
Aquilo que chamo arbitrariamente de Igreja Antiga terminou com a morte de Eugênio Pacelli, o Papa Pio XII, que governou a fé católica de 1939 até sua morte, em 1958.
Era um sujeito sério, reservado, aristocrático, solene, distante e que muitos consideravam elitista, autoritário e antipático. Era inteligente, culto e muito conservador.
Supõe-se que, de maneira muitíssimo discreta, tentou ajudar perseguidos pelo nazismo. Ainda assim, foi fraquíssimo na condenação dos regimes autoritários de Hitler e Mussolini, pelo que é duramente criticado até hoje.
Aí, concluída esse pontificado, tudo muda! O conclave elege como papa o bacanudo Angelo Roncalli, João XXIII, também italiano, mas o oposto do antecessor. Este vinha de uma família pobre e numerosa, dedicada à agricultura.
Iria governar a Igreja de 1958 até sua morte, em 1963, mas faria uma verdadeira revolução no campo da fé cristã. E mais: posso dizer, sem medo, que é um dos elementos propulsores das radicais mudanças que abalaram o mundo nos anos 1960. Trata-se de um abalo sísmico que agita a humanidade até hoje.
Foi quem convocou o Concílio Vaticano II (que terminaria somente em 1965), um esforço colegiado reformista que transformou as bases da Igreja. Criou, por exemplo, ainda 1963, a possibilidade de que as missas fossem rezadas em línguas vernáculas (como o Português), deixando para trás o hermetismo do Latim.
Mas o Concílio fez muito mais que revisar a liturgia. Mudou, por exemplo, o apostolado dos leigos, a colegialidade dos bispos, determinou novos rumos para o ecumenismo e abriu caminhos para uma nova pastoral, mais próxima das necessidades das pessoas comuns, no universo do estudo, do trabalho e das relações familiares.
Há padres e bispos que não aceitam isso até hoje, e lutam dia e noite por um retrocesso na Igreja. João XXIII era o justo-contrário de seu antecessor. Chamado de “Papa Bom”, era afável, gentil, divertido. Visitava presos, doentes, criança e idosos. E preocupava-se demais em patrocinar a assistência aos mais pobres. Pode-se dizer que era um papa parecido com o notável Francisco.
Depois dele, veio Giovanni Montini, outro italiano, que governou entre 1963 e 1978. Esse não era nada carismático. Era outro daqueles caras sérios, tímidos, solenes, de ótima formação, que evitava o contato mais caloroso com as pessoas.
Foi um conservador? Na verdade, não. Era um moderado de boas intenções, que soube continuar o esforço do Concílio e implementar as mudanças de renovação da Igreja. Viveu uma época difícil demais, com sacerdotes abandonando o ministério, revoltas sociais, mudanças nos costumes, uma enorme Guerra Fria e menores guerras quentes, como a do Vietnã.
João Paulo I, que nasceu Albino Luciani, deveria ser uma espécie de novo João XXIII, mas o Papa Sorriso governou por apenas 33 dias. Talvez tenha morrido vítima das pressões do pontificado. Seu coração não suportou. Os teóricos da conspiração afirmam que foi assassinado pelos conservadores e pela ultradireita mundial. A resposta está sepultada com ele, na Gruta Vaticana.
Aí, aparece no cenário Karol Józef Wojtyła, que adotaria o nome de João Paulo II, o primeiro papa não-italiano desde Adriano VI, holandês que ocupou o trono de Pedro entre 1522 a 1523.
Esse foi fundamental na construção do “concerto” (no sentido de acordo) neoconservador que controlaria o mundo a partir dos anos 1980, compondo com o thatcherismo e o reaganismo. Foi a resposta global articulada do conservadorismo à era das transformações que tivera seu pico em 1968.
João Paulo II, ao contrário do que pode parecer para a esquerda, não era malvado nem antipático. Pelo contrário, era contido, mas caloroso. E tinha, sim, um senso aguçado de compaixão pelos mais pobres. Atravessei com ele uma pinguela sobre poças de lama, no Aterro de Comdusa, em Vitória, no Espírito Santo. Ele conversara com mulheres muito humildes, em habitações precárias. Saiu de lá profundamente comovido, entristecido, lágrimas nos olhos. Dizia: “assim não pode ficar”.
O problema de João Paulo II foi ter crescido e se formado em um ambiente de anticomunismo militante. Para ele, a esquerda política não era a solução, e sim o principal problema contemporâneo.
Foi assim que remoldou a Igreja, com auxílio de Ratzinger (que seria seu sucessor), uma espécie de neoinquisidor do Santo Ofício. Esse fiel escudeiro cassou a palavra de sacerdotes progressistas e reduziu o poder dos bispos comprometidos com a Teologia da Libertação e a Opção Preferencial pelos Pobres.
Em São Paulo, por exemplo, em 1989, João Paulo II cortou as asas de Dom Paulo Evaristo Arns (famoso pela luta contra a Ditadura Militar), ao fatiar a arquidiocese em cinco territórios eclesiásticos.
O papa era “pop”, sem dúvida, como dizia a canção dos Engenheiros do Hawaii, mas nem de longe estava alinhado com as demandas dos marginalizados do Terceiro Mundo. O papa não cedeu espaço de acolhida aos homossexuais, aos divorciados, às mulheres e às teólogos alinhados com luta popular por emancipação e direitos.
João Paulo II era um homem piedoso, sem dúvida, na lida particular, nas cores de suas introspecções religiosas, na essência do coração. Enquanto homem político e chefe de Estado, entretanto, representou um longo período, de 26 anos, 5 meses e 17 dias, em que a Igreja retrocedeu na sua necessária busca de universalidade.
Seu sucessor, Joseph Ratzinger, o alemão que adotou o nome de Bento XVI, governou por 7 anos, 10 meses e 9 dias, entre 2005 e 2013. Antes disso, foi Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), nome moderno para o antigo Tribunal do Santo Ofício.
Nessa época de implacável inquisidor, não falava com (quase) ninguém. Consegui entrevistá-lo para o Estadão, em um encontro teológico episcopal no Rio de Janeiro.
Bento XVI não era afetuoso, mas também não era antipático. Era rígido, mas leve, se isso é possível. Não se alterava. Dizia muito “não”, mas sempre com um meio sorriso nos lábios. Alterava-se aqui e acolá, mas logo retomava a postura racional.
Nada contra os alemães, mas era exatamente um deles, segundo o senso comum. Era afeito a regras, disciplinas, atitudes correcionais, vigilâncias e castigos. Ainda assim, como sua missão era preservar o status quo, fez vistas grossas a muitas irregularidades na Santa Sé e omitiu-se demais nos escândalos dos padres pedófilos.
Acreditava que realmente acreditava numa Igreja una, indivisível, cuja perpetuidade dependia do respeito à ortodoxia e do cultivo da tradição. Creio que amava mais a Igreja do que a humanidade. No fim da vida, considero que rendeu-se à realidade do mundo em um último ato de contrição. Admitiu seus pecados, fraquezas e incapacidades. E isso está muito bem posto em “Dois Papas”, o ótimo filme de Fernando Meirelles.
Aí, em 2013, vem mais um conclave. No anterior, já se havia votado no argentino Jorge Bergoglio, que acabou derrotado por seu colega alemão.
Agora, a igreja respirava, ainda que com aflição. Havia corrupção na gestão da Santa Sé e nos negócios do Vaticano, mutretas novas e mutretas antigas, resquícios das pecadoras tradições do Banco Ambrosiano – que no passado mais distante ligara-se à Máfia e à CIA para patrocinar maldades locais e mundiais.
Era preciso oferecer uma resposta aos fiéis que começavam a duvidar da instituição, assolada por denúncias de padres apalpadores e contadores especialistas em maracutaias.
A solução foi eleger o torcedor do San Lorenzo, um outsider do fim do mundo, que dominava apenas um latim instrumental, e (ao contrário de Ratzinger) tinha dificuldade para manter uma conversa fluente na língua ritual.
Bergoglio veio de uma família da classe média baixa, imigrante, vivendo a realidade da periferia do capitalismo. Bailava o tango, namorava, escrevia poemas e ganhava a vida como podia, como faxineiro ou porteiro de boate. Ao mesmo tempo, depois de sua “conversão”, obteve uma sólida formação acadêmica no campo das humanidades.
Na época do conclave, sofreu oposições da esquerda e da direita. Para os primeiros, havia se omitido durante a sangrenta ditadura militar argentina, que ceifou pelo menos 30 mil vidas, algumas delas de religiosos católicos.
Em sua defesa, cardeais como o hondurenho Oscar Maradiaga, seu principal “pope maker”, afirmou que Bergoglio fizera o que podia para proteger seus padres e seus fiéis, evitando o confronto direto com os botinudos. Naquelas circunstâncias, com sua consciência possível da época, fizera o melhor dos papéis.
O próprio Bergoglio, entretanto, já empreendera um mea culpa. Julgara a si próprio menos valente do que a situação havia exigido. Sua penitência foi o estudo, a imersão na realidade da pobreza, a compreensão do mundo injusto que seus comandados jesuítas tentavam mudar. Leu tudo que pôde sobre a dimensão dos oprimidos, até mesmo as obras de Paulo Freire.
A jornada de Bergoglio é maravilhosa porque parte da dúvida para a imperfeição, da imperfeição para a contrição, da contrição para um gesto corajoso de autocrítica e de mudança no repertório de condutas.
Não é preciso repetir aqui as façanhas de Francisco, frescas na cabeça de todo mundo.
Sobre o conclave em curso. Em 2013, havia cardeais de 48 países. Agora, são 70 nações representadas. A diversidade é muito maior do que há 12 anos.
São 133 votantes, e a maioria (108) foi nomeada pelo próprio Francisco. Bento XVI nomeou 21; e quatro são remanescentes da era João Paulo II.
Não quer dizer, no entanto, que a maioria esmagadora seja de reformistas progressistas, pois esses prelados viveram por décadas em uma igreja constituída segundo os esforços dogmáticos dos conservadores Bento XVI e João Paulo II.
Além disso, questões como comunhão para divorciados, celibato, homossexualidade, sacerdócio de mulheres, entre outros, não estão na lista de prioridades dos cardeais. Muitos deles estão preocupados em eleger o melhor “CEO” para uma empresa da qual são “representantes nacionais”. Querem, sobretudo, uma gestão tranquila, estável, sustentável e geradora de recursos.
O papabile favorito é, sem dúvida, Pietro Parolin, secretário de Estado do Vaticano, diplomata experiente, um moderado, considerado bom gestor, mas sem experiência pastoral. É um sujeito de gabinete. Nunca mostrou predileção pelo contato direto com o rebanho de uma diocese.
Matteo Zuppi é o meu preferido, e teoricamente também o preferido de Macron. É o mais progressista dos papáveis, o “cardeal ciclista” de Bologna (La Rossa, a Cidade Vermelha). Tenderia a aprofundar as reformas iniciadas por Bergoglio. Defende imigrantes, bênção para homossexuais e comunhão para recasados e divorciados. Dificilmente sairá vencedor. Esquerda demais.
Péter Erdő, da Hungria, é uma das apostas dos conservadores-raiz. Pegue o cara aí de cima. Ele pensa, quase sempre, ao contrário. Também creio que não tenha chances.
Luis Antonio Gokim Tagle, das Filipinas, seria uma opção menos radical de continuidade ao trabalho de Francisco. É simpaticão, boa praça, moderadamente progressista. Mas acredito que o conclave não vá eleger alguém de olhos puxados. Esta é uma religião, sobretudo, ocidental. O fenótipo conta.
Mario Grech, de Malta, tem um jeitão de Bergoglio. Começou conservador e foi, aos poucos tecendo, um caminho no campo progressista, alinhando-se com o pensamento de Francisco. Defende imigrantes, ordenação de mulheres, bênção para homossexuais e comunhão para divorciados. Se for eleito, e implementar tudo isso, seria o melhor dos mundos. O problema é o “se”.
O espanhol Juan José Omella, arcebispo de Barcelona, é outro cardeal sorridente e com uma agenda progressista. Por ser alinhado com Bergoglio e latino, está entre os favoritos.
No conclave, entretanto, quem entra papável sai cardeal. E não será surpresa se um “azarão”, fora de qualquer lista das casas de apostas, assumir o cetro de Pedro.
Foto do post: filme “Dois Papas”, de Fernando Meirelles