O que senti ao visitar um extinto campo de concentração na Alemanha só para mulheres

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Em julho deste ano, eu tive uma experiência bastante particular, para dizer o mínimo. Como parte de um curso, passei 3 noites e quatro dias em um território que serviu de campo de concentração durante a segunda guerra mundial.

O que senti ao visitar um extinto campo de concentração na Alemanha só para mulheres

Diferente de outros campos na Polônia, o campo de concentração de Ravensbrück(Alemanha) inicialmente foi formado para abrigar mulheres que de alguma forma não agiam conforme o que era esperado delas: mulheres identificadas com “problemas sociais”, acusadas da prática de crimes (aborto dentre eles), envolvidas em movimentos políticos contra o regime nazista e aquelas que se recusavam a negar sua fé como testemunhas de Jeová.

As judias chegaram um pouco depois do estabelecimento do campo de concentração. Tratava-se de um campo de trabalhos forçados e não de exterminação. Algumas empresas, principalmente têxteis e relacionadas ao desenvolvimento de tecnologia, cresceram e prosperaram utilizando-se do trabalho das mulheres desse campo. Eventualmente, cerca de 20.000 homens foram trazidos para trabalhar na expansão do campo, uma vez que a produção prosperava aceleradamente.

Ravensbrück é um lugar estranhamente calmo e bonito. Há um grande lago, há plantas, pássaros. Fica a 2km de uma pequena cidade, que pode ser avistada do outro lado do lago, que aliás, foi o recipiente de cinzas humanas. Cinzas que também foram usadas para pavimentar estradas ao redor do campo. Tudo ali foi construído com o trabalho das mulheres do campo, bem como com suas cinzas.

Sempre achei que visitar um extinto campo de concentração me ajudaria a entender melhor o holocausto. Na bagagem de volta, trouxe mais dúvidas do que respostas.

O que aconteceu ali não é possível de se compreender, ainda que se durma nas casas que um dia foram das guardas responsáveis pela segurança do campo. Ainda é difícil entender como algo assim pôde acontecer.

Racionalmente, há diversas explicações e eu as compreendo. Mas emocionalmente, não consigo aceitar, não consigo entender: como é possível não ver um ser humano naquela pessoa à sua frente? Como processos de desumanização podem são tão profundos a ponto de levar a genocídios?

Ao visitar Ravensbrück também me choquei com a ostensiva segurança, por câmera e também com guardas 24 horas por dia. Isso porque o campo costuma ser alvo de ataques de grupos neonazistas, que tentam destruir as evidências do que ocorreu ali.

O guia que nos acompanhou durante os 4 dias que estivemos no campo, disse-nos muitas vezes sobre a importância de lembrar o que se passou ali. Para que aprendamos e estejamos atentos: pode sempre acontecer de novo.

Uma sociedade que se permite esquecer, está sujeita a repetir os mesmos erros. Eu voltei pensando no quanto a memória, individual e coletiva, é valiosa. E o quanto no Brasil, lembramo-nos de esquecer momentos traumáticos. Sentimo-nos desconfortáveis, preferimos “pensar que já passou e olhar pra frente”. Mas como? Como se olha pra frente sem entender o que aconteceu no passado?

Quando li esses dias que um famoso cantor negou, em entrevista, que o Brasil viveu uma ditadura militar e que pessoas morriam por ser contra o regime, me deixou de cabelos em pé. Seria desconhecimento? Ou apenas uma vontade muito grande de negar o acontecido? O fato de o Brasil anistiar inclusive torturadores e muitas vezes homenageá-los com nomes de ruas e praças talvez tenha um relevante papel nesse esforço por negar e esquecer: foi o preço que pagamos por uma transição negociada para a democracia.

Como consequência, não enfrentamos com as continuidades que ainda se manifestam na nossa sociedade. A Comissão da Verdade apontou, dentre outras coisas, que a nossa polícia ainda opera nos moldes da ditadura militar: desaparecimentos forçados e tortura ainda são rotina.

Recentemente, uma exposição de arte foi fechada por pressão de um grupo social que a considerou “imoral”. Desde 2013, grupos que clamam pela volta dos militares se avolumam nas manifestações: de rua e virtuais. Quando lembro que em 64, a ditadura foi instaurada com apoio de parte da sociedade, que clamava por mais “ordem” (Marcha da Família com Deus), penso nas sérias consequências de nosso esforço em esquecermos.

Como eu aprendi em Ravensbrück, lembrar é central para que possamos avançar.

Para lembrar, é preciso resgatar a história, coletar depoimentos, registrar, construir memoriais, estudar, discutir com a sociedade essa história. Essa é uma luta dos sobreviventes, bem como familiares de desaparecidos políticos e mortos durante a ditadura.

Não temos um holocausto na nossa história, mas temos eventos traumáticos sobre os quais precisamos nos debruçar e buscar entender. Só temos a agradecer a eles por não desistirem e nos alertar constantemente que pode acontecer de novo. Somemo-nos a eles, é o único caminho para avançarmos enquanto sociedade.

Tamara Amoroso Gonçalves é Mestra em Direitos Humanos pela USP e doutoranda em direito pela Universidade de Victoria, Canadá. Integrante do CLADEM/Brasil e do GEA. Pesquisadora associada do Instituto Simone de Beauvoir (Universidade Concordia, Canada). Autora de diversas obras sobre direitos humanos, dentre elas Direitos Humanos das Mulheres e a Comissão Inter-americana de Direitos Humanos (Saraiva, 2013).

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