O que significa dizer “camarada” no mundo de hoje?

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“Camarada” dá nome a uma relação caracterizada por uma condição comum, pela igualdade e pela solidariedade. Para os comunistas, a condição comum, a igualdade e a solidariedade são utópicas, rompendo as determinações da sociedade capitalista.

Por Jodi Dean, compartilhado de Boitempo




na foto: “A Carmagnole”, de Käthe Kollwitz (1901). Imagem: Wikimedia Commons

Em seus escritos sobre prostituição, sexo e família dos primeiros anos da revolução bolchevique, Aleksandra Kollontai apresenta a camaradagem e a solidariedade como sensibilidades necessárias para a construção de uma sociedade comunista. Ela associa a camaradagem a um “sentimento de pertencimento”, uma relação entre trabalhadores comunistas livres e iguais.1 No capitalismo, os trabalhadores não são automaticamente camaradas. O capitalismo tenta separá-los e torná-los competitivos, egoístas e temerosos. O comunismo abole essas condições. “Em vez da família individual e egoísta, desenvolver-se-á uma família de trabalhadores, na qual todos os trabalhadores, homens e mulheres, serão, sobretudo, camaradas”, escreve Kollontai.2 “Camarada” aponta para um modo de pertencimento oposto ao isolamento, à hierarquia e à opressão das formas burguesas de relação, particularmente do trabalho e da família sob o capitalismo. Trata-se de uma modalidade caracterizada por igualdade, solidariedade e respeito; a coletividade substitui o egoísmo e a presunção. A palavra russa para “camarada”, tovarish, é masculina, mas seu poder é tal que liberta as pessoas das amarras da gramática. Um livro soviético sobre linguagem literária publicado em 1929 dá o exemplo de uma “camarada irmã”, formulação que soa engraçada em russo, mas evoca a nova linguagem e as novas emoções da revolução.3

Para Kollontai, a camaradagem é um princípio fundamental da moralidade proletária; ela constitui a chave para a “reeducação radical de nossa psique” sob o comunismo. A camaradagem engendra novos sentimentos, de modo que as pessoas deixam de se sentir desiguais e compelidas a se submeter. Agora, elas são “aptas à liberdade em vez de estarem limitadas por um senso de propriedade, aptas à camaradagem em vez de desigualdade e submissão”.4

Maksim Górki tem um conto do início do século XX, publicado em inglês em 1906 no Social Democrat, intitulado simplesmente “Camarada”. A história atesta o poder vivificante do termo. Górki apresenta “camarada” como uma palavra que “veio para unir o mundo inteiro, para erguer todos os homens aos cumes da liberdade e atar com novos laços, os laços fortes do respeito mútuo”.5 A história retrata uma cidade sombria e “torturante”; uma cidade de hostilidade, violência, humilhação e raiva onde os fracos se submetem ao domínio dos fortes. Em meio a esse sofrimento miserável, uma palavra ressoa: “camarada”! As pessoas deixam de ser escravas. Recusam-se a se submeter. Tomam consciência de sua força. Reconhecem que elas próprias são a força da vida.

Quando as pessoas dizem “camarada”, elas mudam o mundo. Um dos exemplos de Górki é a prostituta que sente a mão de alguém em seu ombro e depois chora de alegria ao se virar e ouvir a palavra “camarada”. Com essa palavra, ela é interpelada não como um objeto que se vende enquanto mercadoria a ser usufruída por outro, mas como uma igual na luta comum contra as próprias condições que exigem a conversão de tudo em mercadoria. Outros exemplos apresentados são um mendigo, um cocheiro e um grupo de jovens combatentes – para todos eles, “camarada” brilha como uma estrela que os guia para o futuro. Assim como Kollontai, Górki associa “camarada” à liberdade em relação à servidão e à opressão, associa “camarada” à igualdade. Ambos apresentam o camarada em oposição à exploração egoísta, à hierarquia, à concorrência e à miséria próprias do capitalismo. E, assim como Kollontai, Górki vincula a camaradagem a uma luta por (e a uma visão de) um futuro em que todos serão camaradas.

Celebrações igualmente românticas das relações entre camaradas também animam as páginas do jornal estadunidense The Comrade, publicado entre 1901 e 1905. The Comrade era uma publicação mensal ilustrada voltada a socialistas de classe média dotados de consciência ética. Trazia poemas, contos, artigos sobre a indústria e as condições das classes trabalhadoras, traduções de socialistas europeus e ensaios autobiográficos como “How I Became a Socialist” [Como me tornei socialista]. Inspirado em parte pelo “masculino amor dos camaradas” de Walt Whitman,6 o jornal ecoa o homoerotismo, a homossocialidade e o aspecto queer celebratório de Whitman.7 Relações camaradas são relações de novo tipo, relações que rompem as amarras da família, do heteropatriarcado e do binarismo de gênero. Um dos contos do jornal, “The Slave of a Slave” [O escravo de um escravo], é um bom exemplo disso: no vernáculo da época, a protagonista é uma tomboy que tenta salvar uma pobre mulher de seu marido brutal e, ao fracassar, expressa gratidão ao perceber que ela mesma nunca será uma mulher.8 Hoje, quem sabe poderíamos reconhecer a protagonista como uma orgulhosa pessoa trans.

O periódico The Comrade trazia poemas enaltecendo o camarada e a camaradagem. No poema “A Song of To-Morrow” [Uma canção do amanhã], George D. Herron sonha que o “amor-camarada inundará o mundo”.9 O poema de Edwin Markham, “The Love of Comrades” [O amor de camaradas], evoca abelhas-camaradas. Outro poema de Herron transforma camarada em sufixo: dia-camarada, casa-camarada, marcha-camarada, futuro-camarada, estrelas-camarada.10 […] O escritor soviético Andrei Platónov também acena para um sol e umas estrelas camaradas, plantas camaradas, para o lombo camarada de um cavalo.11 Como observa Oxana Timofeeva: “Nos escritos de Platónov, não só os humanos, mas todas as criaturas vivas, incluindo as plantas, são inundados pelo desejo por comunismo12.

Esses exemplos colhidos de autores soviéticos e do periódico The Comrade vinculam a camaradagem a um futuro caracterizado por igualdade e pertencimento, por um amor e um respeito entre iguais tão grande que não podem ser contidos nas relações humanas e transbordam para incluir insetos e galáxias (abelhas e estrelas) e os próprios objetos13. “Camaradas” marca a divisão entre o mundo de miséria que existe e o mundo comunista igualitário que existirá.

Tal como a história revolucionária soviética e o homossocialismo de inspiração anglo-americana de Whitman do início do século XX, a palavra chinesa para camaradatongzhitambém substitui as designações hierárquicas e de gênero da relação por um “ideal de igualitarismo e utopismo”.14 No chinês contemporâneo, tongzhi também significa “gay”De acordo com Hongwei Bao, tongzhi é intrinsecamente queer:

o termo mapeia as relações sociais de uma forma nova, uma forma que abre a estrutura tradicional de família e parentesco para relações e conexões entre estranhos que compartilham as mesmas perspectivas políticas, transformando intimidade privada em intimidade pública”.15

Os camaradas queer de Bao ressoam com a leitura que Jason Frank faz do éthos de camaradagem presente nos poemas do Cálamo [conjunto de poemas no interior de Folhas na relva] de Whitman, nos quais relações eróticas de camaradagem desestabilizam e superam “diferenças identitárias de localidade, etnia, classe e ocupação, sexo, raça e sexualidade”.16

Kollontai, Górki e seus camaradas queer inspiram a minha primeira tese sobre o camarada: camarada é uma figura genérica e igualitária – e, para comunistas e socialistas, utópica – de relação política. A dimensão igualitária do camarada nomeia uma relação que perpassa as determinações do presente. Esse sentido de “camarada” transparece na conclusão de Os condenados da terra, quando Frantz Fanon interpela repetidamente seus leitores como camaradas: “Vamos, camaradas, o jogo europeu está definitivamente terminado, é necessário encontrar outra coisa”; e, na última frase do livro: “Pela Europa, por nós mesmos e pela humanidade, camaradas, temos de mudar de procedimento, desenvolver um pensamento novo, tentar colocar de pé um homem novo”.17 “Camarada” é a forma de tratamento apropriada para essa empreitada. Forma igualitária, genérica, abstrata e, em um contexto de hierarquia, fragmentação e opressão, utópica.

Os comunistas não são os únicos a sublinhar a dimensão utópica do camarada. Em Homenagem à Catalunha, George Orwell descreve Barcelona em 1936, durante a Guerra Civil Espanhola, em termos de uma camaradagem utópica. No cenário anarquista revolucionário de Barcelona, ele nos diz: “As formas servis e até mesmo cerimoniosas de tratamento tinham desaparecido temporariamente. Ninguém mais dizia ‘señor’, ou ‘don’, ou mesmo ‘usted’; todos chamavam uns aos outros de ‘camarada’ e ‘tú’, depois diziam ‘salud!’ em vez de ‘buenos días’”18.

Hoje, em um ambiente cada vez mais nacionalista e autoritário, intensamente competitivo, desigual e miserável, em um mundo de exaustão antropocênica, é difícil recapturar a esperança, a futuridade e o sentido de luta compartilhada que faziam parte de uma tradição revolucionária anterior. O que é, então, a camaradagem para nós? Minha aposta ao longo deste livro é a de que um ensaio especulativo-compositivo da camaradagem, que destila elementos comuns de vários usos do termo como forma de tratamento, figura de pertencimento e recipiente para expectativas compartilhadas, pode nos fornecer uma visão da relação política necessária para o presente. Camaradas são mais que sobreviventes e mais que aliados. São aqueles que se encontram do mesmo lado de uma luta por um mundo igualitário emancipado.

Notas

  1. Aleksandra Kollontai, “New Woman” [1918], em The Autobiography of a Sexually Emancipated Communist Woman (trad. Salvator Attansio, Freiburg im Breisgau, Herder and Herder, 1971). ↩︎
  2. Idem, “Communism and the Family” [1920], republicado em Selected Writings of Alexandra Kollontai (trad. Alix Holt, Londres, Allison & Busby, 1977). ↩︎
  3. Devo a Maria Chehonadskih esse exemplo, que se encontra em G. O. Vinokur, Kul’tura iazyka (Moscou, 1929). ↩︎
  4. Aleksandra Kollontai, “Sexual Relations and the Class Struggle”, republicado em Selected Writings of Alexandra Kollontai, cit [ed. bras.: “A relação entre os sexos e a luta de classes”, em A revolução das mulheres: emancipação feminina na rússia soviética: artigos, atas panfletos, ensaios (org. Graziela Schneider Urso, São Paulo, Boitempo, 2017)]. ↩︎
  5. Maksim Górki, “Comrade”, Social Democrat, v. X, n. 8, ago. 1908, p. 509-12. ↩︎
  6. Walt Whitman, “Para ti Ó Democracia”, em Folhas na relvaedição de leito de morte (trad. Bruno Gambarotto, São Paulo, Hedra, 2011). (N. T.) ↩︎
  7. Ver também Juan A. Herrero Brasas, Walt Whitman’s Mystical Ethics of Comradeship (Albany, Suny Press, 2010) e Kirsten Harris, Walt Whitman and British Socialism: “The Love of Comrades” (Nova York, Routledge, 2016). ↩︎
  8. Amy Wellington, “The Slave of a Slave”, Comrade, v. 1, n. 6, 1901, p. 128. ↩︎
  9. George D. Herron, “A Song of To-Morrow”, Comrade, v. 3, n. 4, 1903, p. 83. ↩︎
  10. Idem, “From Gods to Men”, Comrade, v. 1, n. 4, 1901, p. 97. ↩︎
  11. McKenzie Wark também observa como Platónov faz um “tratamento pungente e sutilmente molecular da vida cotidiana proletária, entre rochas, animais e plantas – como camaradas”. McKenzie Wark, Molecular Red (Londres, Verso, 2015), p. 67. ↩︎
  12. Oxana Timofeeva, History of Animals (Londres, Bloomsbury, 2018), p. 167. ↩︎
  13. Ver também Stevphen Shukaitis, “Can the Object Be a Comrade?”, ephemera, v. 12, n. 2, 2013, p. 437-44. ↩︎
  14. Hongwei Bao, “‘Queer Comrades’: Transnational Popular Culture, Queer Sociality, and Socialist Legacy”, English Language Notes, v. 49, n. 1, primavera/verão 2011, p. 132. ↩︎
  15. Idem. ↩︎
  16. Jason Frank, “Promiscuous Citizenship”, em John Seery (org.), A Political Companion to Walt Whitman (Lexington, University Press of Kentucky, 2011), p. 164. ↩︎
  17. Frantz Fanon, The Wretched of the Earth (trad. Richard Philcox, Nova York, Grove, 2004), p. 236 e 239 [ed. bras.: Os condenados da terra, trad. José Laurênio de Melo, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p. 272 e 275]. ↩︎
  18. George Orwell, Homage to Catalonia (San Diego, Harcourt Brace, 1952), p. 5 [ed. bras.: Homenagem à Catalunha: a luta antifascista na Guerra Civil Espanhola, trad. Claudio Alves Marcondes, São Paulo, Companhia das Letras, 2021]. Todos os trechos da obra citados neste livro são traduções livres. ↩︎

PARA SE APROFUNDAR NO TEMA

Camarada: um ensaio sobre pertencimento político, de Jodi Dean
No século XX, milhões de pessoas em todo o globo se dirigiam umas às outras como “camarada”. Hoje, em círculos de esquerda é mais comum ouvir falar em “aliados”. Neste livro, Jodi Dean insiste no fato de que essa mudança exemplifica o problema fundamental da esquerda contemporânea: a sobreposição da identidade política a uma relação de pertencimento político que precisa ser construída, sustentada e defendida. Neste ensaio com recortes e análises bastante originais, Dean nos oferece uma teoria da camaradagem. Camaradas são pessoas que se encontram de um mesmo lado de uma luta política. Unindo-se voluntariamente por justiça, sua relação é caracterizada por disciplina, coragem e entusiasmo.

Multidões e partido, de Jodi Dean
Como agrupamentos de pessoas viram movimentos organizados? Rejeitando a ênfase em indivíduos e multiplicidades, Multidões e partido reitera a necessidade de repensar o sujeito coletivo da política e demonstra a importância de ver o partido enquanto organização capaz de revigorar a prática política. Ensaio sintético com recorte e análise bastante originais, reabilita tradição e prática comunistas clássicas sem apelo a tradicionalismo ou nostalgia, mobilizando linguagem, abordagem e arcabouço teórico ancorados na atualidade política e na filosofia e teoria social contemporâneas.

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