Por Oscar Valporto, compartilhado em Projeto Colabora –
Mais de 30 anos depois da lei que tornou crimes injúria racial e racismo, ataque de deputado leva tema de volta ao Parlamento
Fazem mais de 30 anos – janeiro de 1989 – da sanção da lei que tornou crimes o racismo e a injúria racial. São quase 10 anos – junho de 2010 – da aprovação pelo Congresso Nacional do Estatuto da Igualdade Racial. Em 2012, foi aprovada a chamada Lei das Cotas, a última legislação polêmica sobre a questão racial no Brasil a tramitar no Parlamento. Desde então, o racismo tinha ficado longe das atenções do Legislativo. Como a maioria do próprio Movimento Negro considera a legislação contra o preconceito avançada – tanto que o STF enquadrou homofobia e transfobia em crime de racismo aproveitando a lei existente – , o debate ficava sempre na falta de ação do Executivo para transformar as leis em políticas públicas para prevenir e punir o racismo. Até o deputado Coronel Tadeu (PSL/SP) arrancar um desenho sobre genocídio negro da exposição da Câmara dos Deputados para o Dia da Consciência Negra e seus aliados acrescentarem comentários racistas ao defender o ataque: o racismo já voltou à pauta do Parlamento.
A própria placa com a charge do cartunista Carlos Latuff – mostrando um jovem negro assassinado e um policial com arma na mão – explica o tamanho do racismo institucional no país. De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 75% dos mortos em intervenções policiais são pretos ou pardos – apesar de serem 55% da população. Tem mais: a média de rendimentos da população branca é o dobro da negra; os 10% da população com os maiores rendimentos no Brasil, 8 a cada 10 são brancos e, entre os 10% mais pobres, a proporção se inverte: 8 a cada 10 são negros. Na educação, apenas 8,8% da população negra com mais de 25 anos frequentou uma faculdade; entre a população branca, esse índice é de 22,2%. No próprio Congresso Nacional, apenas 24% dos parlamentares se declaram pretos e pardos.
Essa sub-representação não impediu a aprovação da Lei Caó – em homenagem ao seu autor, o então deputado Carlos Alberto de Oliveira, negro, pedetista e jornalista – em 1989 e do Estatuto da Igualdade Racial, nascido de iniciativa do senador – petista e negro – Paulo Paim. E, apesar das discussões sobre propostas de mudanças e adequações às duas legislações, o racismo ficou longe do centro da pauta legislativa até a iniciativa do Coronel Tadeu, na véspera do Dia da Consciência Negra. Coronel PM, ele arrancou e pisoteou a placa com o desenho de Latuff, em exposição na Câmara. Depois, justificou: “há uma absurda atribuição da responsabilidade pelo genocídio da população negra aos policiais militares”. Soldado PM, o deputado Daniel Silveira (PSL/RJ) defendeu o colega com uma pérola racista. “Tem mais negros com armas, mais negros no crime e mais negros confrontando a polícia”, disse o policial parlamentar. Tadeu, depois, repetiu praticamente o mesmo argumento em discurso na tribuna cercado por outros policiais com mandato na Câmara.
Ainda na terça-feira, 19/11, 14 deputados de quatro partidos apresentaram na PGR (Procuradoria-Geral da República) uma representação contra Tadeu pelo crime de racismo e atos de vandalismo. A mesma representação também acusa de racismo o deputado Daniel Silveira. Como os deputados possuem foro privilegiado, é o procurador-geral da República, Augusto Aras, quem decide se eles devem ser denunciados ou não: e é o Supremo Tribunal Federal quem vai decidir se processa. Caso a PGR ou o STF considerem que o crime não tem relação com o exercício do mandato, o procedimento é remetido para a primeira instância: racismo e injúria racial têm penas de um a três anos de prisão.
O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, ainda tentou jogar água fria na fervura, criticando o ato racista. “Não é porque nós divergimos da posição da outra pessoa que nós devemos agredi-la verbalmente e fisicamente ou retirar de forma violenta, de uma exposição, uma peça que foi autorizada pela presidência da Câmara”, afirmou Maia, antes de mandar restaurar a placa com o desenho e restituí-la ao seu lugar na exposição “(Re)existir no Brasil: Trajetórias Negras Brasileiras”.
Quando a placa voltou, nas últimas horas do Dia da Consciência Negra, o ataque racista já tinha provocado outras reações. O Partido dos Trabalhadores ingressou no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados com representação contra o deputado federal Coronel Tadeu por quebra de decoro parlamentar. A representação classifica a atuação do deputado como uma “manifestação racista de ódio”, configurando um “crime repugnante que atinge não apenas a população negra, mas toda a sociedade brasileira”. Para o PT, o deputado do PSL infringiu tanto a Constituição como o Estatuto da Igualdade Racial e o Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara. A representação também é assinada por deputados do PSol, do PCdoB e do PSB.
Ainda antes da recolocação da placa, parlamentares e militantes do Movimento Negro levaram dezenas de reproduções do desenho de Latuff para serem afixados na exposição. O próprio Latuff protestou nas redes sociais. “Quando esse policial promove essa agressão, ele está confirmando a mensagem da charge. Ele está confirmando não só a violência policial como essa censura de todo tipo de denúncia contra a violência policial. Na verdade, ele está passando um atestado. Está confirmando a truculência da polícia brasileira que é sim o grande agente do genocídio da população negra e pobre no Brasil”, declarou o cartunista.
A truculência da destruição da placa, na verdade, não é o primeiro ato dos aliados do presidente Jair Bolsonaro contra o Movimento Negro e as políticas anti-racismo. Em março, a deputada Dayane Pimentel (PSL/RS) apresentou projeto para acabar com as cotas nas universidades federais – ela mesma voltou atrás depois da reprecussão. Em maio, por iniciativa dos deputados Eduardo Bolsonaro, Luiz Phellipe de Orleans e Bragança e Delegado Waldir, todos do PSL, a Câmara voltou a ter uma sessão solene em homenagem à Princesa Isabel e à Lei Áurea, depois de sete anos: para o Movimento Negro, comemorar a Abolição enfatiza o papel da monarca e desvaloriza as lutas históricas do escravizados e outros abolicionistas. Em seguida, projeto assinado por oito deputados do PSL – inclusive Bolsonaro, Bragança e bolsonaristas radicais como Bia Kicis e Carla Zambeli – propõe declarar a Princesa Isabel patrona da Abolição da Escravatura; o PL 2824 ainda aguarda o parecer na Comissão de Cultura, onde a relatora é a deputada Maria do Rosário (PT/RS).
A placa, com as marcas do vandalismo, voltou acompanhada por um pequeno cartaz: “A bancada negra sabe que essa charge não representa toda a corporação e respeita os policiais que não corroboram para essas estatísticas e trabalham em prol do povo brasileiro”. Mas os ataques racistas em pleno mês da Consciência Negra vão impedir que o Legislativo continue ao largo desse debate.