Por Rafael Argemon, compartilhado de Huffpost Brasil –
Filme que inspirou “Coringa” se mantém mais atual do que nunca ao satirizar o culto às celebridades e à fama a qualquer preço.
Não é raro um filme relativamente desconhecido – normalmente um fracasso de bilheteria – ser fundamental na concepção de um grande sucesso, mas há exemplos bem curiosos, como O Rei da Comédia, filme dirigido por Martin Scorsese em 1982 e estrelado por seu parceiro de longa data, Robert De Niro.
Se O Rei da Comédia não existisse, nós nunca teríamos visto Coringa, um dos maiores hits de 2019 que, além de conquistar duas estatuetas do Oscar em 2020 (de Melhor Ator para Joaquin Phoenix e Melhor Trilha Sonora), teve a sexta maior bilheteria do ano passado no mundo.
As referências ao filme de Scorsese não são nem um pouco sutis em Coringa. Tanto que o cineasta Todd Phillips convidou ninguém menos que o próprio De Niro para interpretar Murray Franklin, o apresentador de TV idolatrado/odiado por Artur Fleck (Phoenix), uma clara alusão ao apresentador Jerry Langford, o ”ídolo” de Rupert Pupkin, o comediante frustrado vivido por De Niro em O Rei da Comédia.
O irônico é que Scorsese não queria dirigir O Rei da Comédia. O filme não era um projeto dele, mas de De Niro, que o convenceu a filmá-lo depois de muita insistência. O cineasta queria mesmo era transformar em realidade um sonho antigo, a adaptação do livro A Última Tentação de Cristo, que ele só conseguiu concretizar em 1988. Além disso, ele tinha acabado de lançar um filme com De Niro como protagonista: O Touro Indomável (1980).
Tanto que o subsequente imenso fracasso de O Rei da Comédia nas bilheterias – arrecadando apenas US$ 2,5 milhões nos EUA tendo custado U$ 19 milhões – nem incomodou muito o diretor. No livro Conversas com Scorsese, de Richard Schickel, o diretor conta que na véspera da festa de ano novo de 1982 para 1983, ele riu quando viu em um programa de televisão seu filme ser considerado “o fracasso do ano”, que reagiu ao comentário dando de ombros e dizendo um simples: “Ah, ok”.
Os 15 minutos de fama
O Rei da Comédia faz uma reflexão bem ácida sobre o culto às celebridades e à necessidade que muita gente tem de ser uma, não importa o que tenha de fazer para alcançar esse status, mesmo que este seja apenas fruto de sua imaginação. Um assunto que, na época, não chamava muito a atenção das pessoas, mas que hoje, na era das redes sociais, sabemos o quanto é perturbador de tão real.
Na trama, Rupert Pupkin (De Niro) é um comediante frustrado de 34 anos que vive sonhando em ser um famoso apresentador de TV no porão da casa de sua mãe. Assim como seu ídolo, Jerry Langford (Jerry Lewis), um homem amargo que não aguenta mais a vida de famoso.
Assim que sai de uma gravação, Langford é atacado por Masha (Sandra Bernhard), uma fã desvairada. Ele é “salvo” por Pupkin que tenta convencê-lo a convidá-lo para participar de seu programa. Para se livrar do chato, Langford pede para Pupkin procurar sua secretária.
A partir daí, Pupkin passa a ir ao escritório de Langford constantemente atrás do ídolo, mas é convencido pela secretária do apresentador a gravar uma fita com seu monólogo cômico para apreciação.
Quando ela educadamente diz a Pupkin que o trabalho ainda não está bom o suficiente para ele participar do programa, ele perde o controle e, junto com Masha, rapta Langford. Como resgate ele exige sua participação no programa de Langford, enquanto Masha tenta seduzir o apresentador.
Jerry e Jerry
Mas não era apenas De Niro que estava empolgado com O Rei da Comédia. Outro grande astro do cinema embarcou no projeto com muita empolgação. Mesmo não sendo a primeira escolha para o papel de Langford (que foi pensado para Johnny Carson), Jerry Lewis agarrou a oportunidade com todas as forças.
O então rei da comédia nos anos 1960 achou que a história de Langford tinha tantas semelhanças com a sua própria trajetória que ele mudou o nome do personagem, que era para se chamar Robert, não Jerry Langford. Lewis dizia que os muitos anos de fama resultaram em uma depressão profunda e que ele estava ansioso para mostrar esse seu lado mais humano ao público.
Sua dedicação ao filme foi tão grande que ele chegou até a dirigir uma cena de O Rei da Comédia. Durante as filmagens, Lewis contou a Scorsese uma história sobre uma mulher que o parou enquanto ele estava andando na rua e ela estava em um orelhão e que, quando ele se recusou a falar ao telefone, ela começou a gritar que ele merecia ter um câncer. O cineasta gostou tanto do causo que incluiu uma cena bem parecida que nem estava no roteiro, e deixou Lewis dirigi-la. “Jerry encenou tudo com um timing perfeito”, contou Scorsese no livro de Schickel.
Mas o fracasso de O Rei da Comédia bateu bem mais pesado em Jerry Lewis do que em Scorsese, pois após o prejuízo que o filme deu para a Fox, ele nunca mais fez nenhum filme com o estúdio com quem havia realizado a maioria de seus maiores sucessos.
Tempo, tempo, tempo…
Com o passar dos anos e, principalmente por conta do absoluto culto que se formou ao redor de Coringa, O Rei da Comédia passou a ganhar o destaque que merecia. Até Scorsese, que não era um dos maiores fãs de seu próprio filme, passou a admitir que ele pode ser o seu melhor trabalho em parceria com De Niro.
Mas o caminho até a redenção foi tortuoso, mesmo que hoje seja considerado por muitos críticos como um dos grandes trabalhos da dupla, O Rei da Comédia marcou um ponto da carreira que Scorsese e De Niro resolveram seguir caminhos distintos. Os dois não trabalhariam juntos novamente por oito longos anos, até 1990, em Os Bons Companheiros.
No entanto, como dizem por aí, não há ferida que o tempo não cicatrize, e o Rei da Comédia alcançou o status de grande filme que sempre foi. Uma sátira engraçada e extremamente assustadora da obsessão pela fama a qualquer custo que segue ainda mais atual do que em 1982. Sua cena final, em que nunca sabemos se o que estamos vendo é real ou pura imaginação, combina tão perfeitamente com nosso mundo de hoje que chega a dar calafrios na espinha.
*O Rei da Comédia está disponível no catálogo do Amazon Prime Video.