Renato Ortiz (*), especial no Nocaute –
“Quando o retrato de Dorian Gray tornou-se público, entronizado no centro do país, as esperanças se dissiparam, não havia mais contradição a ser superada.”
No centro da sala, fixado em um cavalete de pé, estava o retrato de um país jovem e extraordinário, mas sua beleza vinha manchada pela feiura e a podridão dos acontecimentos, os olhos tinham uma expressão cruel e repugnante. Uma fina coberta de linho encobria sua alma deformada, as pústulas espalhadas no rosto enrugado e cínico. O retrato não devia ser exibido em público, a deformidade à vista exigia o seu ocultamento, ele jazia naquela sala vazia dos porões do congresso nacional retirado do olhar curioso dos passantes.
Ali, a verdadeira natureza do que se queria eludir manifestava-se livremente: miséria, desemprego, corrupção, injustiça, preconceito. Cada uma dessas qualidades nefastas podia realizar-se ao abrigo da luz do dia, o porão era o seu refúgio, o lugar que lhes permitia existir; tolhidas pela exiguidade do espaço, a tela descoberta refletia no espelho o sorriso sincero e defeituoso de um mundo a ser esquecido.
Alguns representantes do povo, homens cuidadosamente escolhidos entre tantos outros, vinham às vezes visitar o retrato, sentavam-se nos assentos improvisados à sua frente e embevecidos contemplavam sua própria essência. Era o único momento em que podiam defrontar-se com seu verdadeiro Eu, deixavam para trás a máscara de suas fraquezas e desonra.
Lá fora, as virtudes exibidas em público eram outras: igualdade, riqueza, emprego, moralidade, justiça. Nas luzes da vida cotidiana vicejava a retidão invertida do que se aninhava nas trevas, aí, a beleza desse jovem país afirmava-se na exuberância e esplendor. A antinomia entre claro/obscuro, virtude/vulgaridade, ética/corrupção, perdurou por muitos anos, um acordo tácito permitiu a convivência desses ideais excludentes.
Muitos tiveram a ilusão que os atributos positivos dessa fotografia em sépia estivessem ao abrigo da corrosão do tempo, a eternidade seria o seu destino. Esqueceram-se que sua denegação permanecia intocada no calabouço daquela sala exígua.
Um dia, alguns desses homens que se reuniam nas catacumbas decidiram desvendar definitivamente o retrato, retiraram a fina malha de linho que o encobria e fixaram com fascinação a escuridão de suas almas. Fascinados com a experiência, resolveram retirá-lo da obscuridade, o colocaram no centro do congresso nacional para ser contemplado pela multidão. O que se encontrava submerso tornou-se explícito, inteligível.
Entretanto, para sua enorme surpresa, uma inesperada sensação de mal estar apoderou-se das pessoas, subitamente elas se viram diante de algo atroz, a obscenidade evidente afastou-as da ilusão a que tinham se acostumado, uma visão menos agressiva e devastadora de si mesmo. Foi nesse momento que o tempo parou, uma sensação de imobilidade e torpor se impôs. Silenciosa e inexorável.
Antes a dicotomia entre a imagem pública e o retrato destorcido permitia o contraste entre os valores discrepantes; malgrado a denegação da realidade, uma esperança sub-reptícia repousava nessa contradição. A dialética do contraste entre o claro e o escuro, a beleza e a feiura, alimentava a imaginação, talvez, um dia, as vicissitudes poderiam se rebelar contra a estupidez e a mediocridade.
Quando o retrato de Dorian Gray tornou-se público (no romance ele é destruído pelo personagem), entronizado no centro do país, as esperanças se dissiparam, não havia mais contradição a ser superada. As pessoas se viram assim diante da iminência dos fatos, paralisados no tempo o porão e a rua tinham se encontrado, fundindo-se numa totalidade única. O destino ingrato e desafortunado trouxe o mal estar à tona, com ele o sabor amargo da vergonha e asco.
Renato Ortiz é Professor Titular Departamento de Sociologia da Unicamp. É autor, entre outros, dos livros “Cultura Brasileira e Identidade Nacional”, “A Moderna Tradição Brasileira”, “Mundialização e Cultura” (Editora Brasiliense) e “Universalismo e Diversidade” (Editora Boitempo).