“O erro da ditadura foi torturar e não matar.”
(Jair Bolsonaro, militar e presidente)
“Apurar o quê? Os caras já morreram.”
(Hamilton Mourão, militar e vice-presidente)
Por Maurício Falavigna, compartilhado de Reconta Aí
Somente entre 1964 e o início de 1979, data limite da investigação que gerou o relatório “Brasil: Nunca Mais”, temos 1.918 prisioneiros políticos que atestaram sofrer torturas, de 283 formas diversas – um compêndio de como reduzir a humanidade ao chão, seja por atos ou sofrimento. Da tortura sempre se soube. E, hoje podemos falar por boa parte da sociedade, sempre se admitiu e aprovou. Do contrário, não teríamos o rompimento democrático de 2016, não teríamos baionetas supervisionando os tribunais, não ouviríamos ameaças covardes das fardas, não teríamos os pupilos dos criminosos de ontem assaltando o poder e, desta vez, respaldado por votos.
“Existe uma dignidade inerente à condição humana, e a preservação dessa dignidade faz parte dos direitos humanos. O respeito pela dignidade da pessoa humana deve existir sempre, em todos os lugares e de maneira igual para todos.”
A aprovação oficial é tão grande que, para retomar a normalidade política e a aparência republicana das instituições, criamos a mortalha da Anistia. Bastou fingir que nada aconteceu. O fervor da mídia substituiu o sangue e as dores pela imagem da “ditabranda”, o temor da toga transformou a ditadura em “movimento”. Pouco importa nossa vergonha ser conhecida internacionalmente, nunca fomos um País sério. Preferimos feridas abertas a qualquer cicatriz. A Justiça seria um ato de pedagogia social e de crescimento como Nação. Mas escolhemos permanecer os aleijões do continente, largados à sorte, minúsculos e à espera dos rumores de coturnos e da autoridade cafajeste que parte de nós aprendeu a, no mínimo, respeitar, quando não admirar.
“O crescimento econômico e o progresso material de um povo têm valor negativo se forem conseguidos à custa de ofensas à dignidade de seres humanos.”
As gravações inéditas reveladas neste domingo mostram o cinismo dos tribunais militares, essa infâmia promíscua de fardas e togas. Sete ministros fingem surpresa e descrença diante das bárbaras torturas relatadas. Rodrigo Octávio, Augusto Fragoso, Waldemar Torres de Costa, Júlio de Sá Bierrenbach, Deoclécio Lima de Siqueira, Amarílio Lopes Salgado e Faber Cintra. Cada nome desses já fazia ou criou sua casta, uma fortaleza forjada em privilégio e benefícios crescentes, condecorações por atos de covardia contra o povo que deveriam proteger. Participaram de uma cadeia de impunidade que quebrou as pernas de uma falsa redemocratização, e que continuará impedindo a sociedade de se levantar e caminhar para a civilização.
“O sucesso político ou militar de uma pessoa ou de um povo, bem como o prestígio social ou a conquista de riquezas, nada disso é válido ou merecedor de respeito se for conseguido mediante ofensas à dignidade e aos direitos fundamentais dos seres humanos.”
Se é que houve uma oportunidade de Justiça, ela foi desperdiçada. A própria Comissão da Verdade foi um dos argumentos para o último golpe. Agora ocorre mais uma tentativa ou possibilidade de abalar a barbárie por meio da opinião pública. O problema aqui é que uma questão de Justiça não deveria ficar à mercê de opiniões públicas. Não deveria contar com o clamor da mídia que colaborou com propaganda, prisões e torturas. Os crimes são considerados como tais em qualquer sistema ou lugar, mas todas as instituições insistem em criar um manto de silêncio e inação. “Acabou, nada aconteceu”.
O resultado do silêncio é a impunidade empoderadora dos militares, a insegurança política, o descrédito das mesmas instituições, o sadismo social que glorifica a violência sobre o mais fraco e, por fim, cerca de oito mil militares ocupando a estrutura administrativa atual, exibindo sua incompetência e se locupletando com acúmulo de rendimentos e desvios de verbas públicas. O resultado da anistia impossibilita, mais que a continuidade democrática, a permanência de governos populares.
Talvez haja eleições em outubro. Talvez a decisão popular afaste da vida pública, uma vez mais, as hienas paramentadas, armadas e famintas. Talvez os resultados sejam respeitados. Talvez consiga se combater as forças reacionárias que, mais uma vez, diminuíram nosso tamanho e podaram nossas esperanças. Talvez, e só talvez, pois tanques e fuzis estão em mãos de nossos patrões, e não da sociedade. Se não restabelecermos nossa memória dando valor a quem lutou contra a injustiça e o arbítrio, encarcerando carrascos que não merecem o respeito que mantiveram, definindo parâmetros de dignidade humana que não possam ser esquecidos… Do contrário, será mais uma corrida de fôlego curto no escuro.
As frases em grifo são de Dalmo de Abreu Dallari. Perderíamos ele um dia. Ao menos não precisou ouvir novamente ao crueldade e o cinismo de quem ainda comanda este País.