O romantismo do futebol arte de um craque reverenciado até por Diego Armando Maradona

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Rememorar o “Craque Invisível” é respeitar as raízes populares do futebol

Por Renato Marques, compartilhado de Holofote Notícias




Na foto: Tomás “El Trinche” Carlovich morreu em maio de 2020 aos 74 anos

Em meio às dezenas de personagens geniais criados pela pena de Luís Fernando Veríssimo, a que mais me encanta é o “outrista”. Figura ímpar, sempre pronto a contestar as unanimidades acerca das qualidades superiores de A sobre todo o restante do alfabeto. Indescritível em sua teimosia por se insurgir contra o mundo, apresentando sempre uma outra opção que se choca com a certeza reinante dos dogmas cristalizados. O neologismo é uma ode ao pensamento dissonante. E antes que o leitor se preocupe com uma possível elegia ao negacionismo, tão presente no discurso acéfalo da extrema direita contemporânea, adianto que o outrista é apenas um chiste que alude ao desejo por polêmica, típico da tradição cultural do esporte mais popular do Planeta.

Em tempos de Copa do Mundo, vale lembrar que o caso mais emblemático de “outrismo” que envolve o mundo esportivo, ocorre em nossa vizinha Argentina.

Imaginem o maior herói nacional, o combatente que na prorrogação do conflito das Malvinas, disputado quatro anos após o drama mortífero, conseguiu impingir as duas estocadas finais na nação imperialista, uma encarnada no mais belo gol já realizado e outra na obra prima esculpida pela mão divina e a perspicácia dos mortais indignados, revertendo em 90 minutos a dor de uma nação conspurcada. Sim ele mesmo, Diego “de la gente” Maradona afirmou – mais de uma vez – que houve em solo portenho alguém que jogou mais do que a si próprio.

Os mais jovens correrão a dizer: – Ele falava de Messi.

Mas não. O escolhido pelo D10S do futebol para simbolizar o craque mais habilidoso da nação alviceleste é, paradoxo perfeito, um desconhecido das multidões. Tomás “El Trinche” Carlovich. Trata-se de alguém que simboliza o marco definitivo de uma era pré-Sociedade do Espetáculo.

Aquele que encantou a todos que o viram jogar, mas que deliberadamente recusou-se a trilhar o caminho considerado único, definido pelo padrão capitalista de sobrevivência, de atuar nos grandes times, em busca de holofotes midiáticos e contratos milionários.

Um homem que, apesar do seu imenso talento, comprovado pelos depoimentos, não somente de Maradona, mas também de ex- técnicos da seleção como Menotti, Bielsa ou Pekerman, além de outros mestres campeões do Mundo, como Fillol ou Valdano, jogou apenas quatro partidas na Primeira Divisão, exercendo o sublime direito de negar o apelo comercial, em troca de manter suas raízes, disputando partidas na Segunda e Terceira Divisões do futebol argentino por sua equipe, o Central Córdoba de Rosário.

Carlovich era um volante canhoto, esguio e cabeludo, que durante as décadas de 1960,70 e 80 desfilou pelos gramados uma técnica e habilidade tão impressionantes capazes de criar todo um imaginário repleto de situações grandiloquentes. Sua marca digital era um drible conhecido em sua terra como doble caño, um “rolinho” duplo, lançando a bola sob as pernas do contendor, em um zigue zague que fazia com que o adversário se comportasse como um Miura em balé, iludido pela rubra capa do seu algoz.

Sobre ele, as histórias se avolumam, como a do dia em que disputou – ao lado de outros jogadores rosarinos – uma partida treino contra a seleção argentina em 1974 e foi retirado do campo por ordem do técnico da seleção nacional (Vladislao Cap)  15 minutos após o intervalo, pois o combinado ganhava de 3 a 0 da seleção e “El Trinche” dominava todas as ações na meia cancha. Em 1976 Menotti o convocou para a seleção nacional, mas Tomás não compareceu. A alegação? Havia ido pescar.

O mito se asseverou a partir do fato que não existem registros fílmicos das atuações de El Trinche. Toda sua trajetória é relatada a partir da oralidade, da reprodução dos que tiveram fixados em suas retinas a magia do trote elegante, conduzindo a pelota em seu pé sinistro, pronto a driblar ou lançar para algum atacante.

Carlovich ficou conhecido como “o craque invisível” Aquele de quem todos falam, mas poucos viram. E merece ser rememorado em um momento como esse, que precede mais uma Copa do Mundo. Outra em que o “padrão FIFA” é imposto, voltado para angariar milhões de dólares, e fadado a reproduzir a visão hegemônica comercial de um futebol que torna-se dia a dia mais excludente, vedado às classes populares, através de arenas higienistas, movidas a ingressos com preços exorbitantes e sacrifícios de operários propositalmente olvidados por fãs pouco afeitos a raciocínios complexos e dispostos a perdoar todas as atitudes aviltantes de um Neymar Jr – por exemplo – em troca de uma taça dourada para chamar de sua.

Se os dias atuais enaltecem a busca desenfreada por cliques, discursos vazios de sentido e comportamentos focados, exclusivamente, no desejo por contratos com cifrões múltiplos. A citação a Carlovich visa destacar que há caminhos díspares. O homem que quando era questionado sobre os motivos de não ter se esforçado para “dar certo”, respondia em meio aos seus amigos e vizinhos do bairro operário de Belgrano em sua Rosário, onde viveu a vida toda: “ – Dar certo? O que é isso? Em toda a minha vida eu só quis duas coisas, estar com os meus e jogar futebol.”

Palavras tão insidiosas àqueles que Nelson Rodrigues chamava de “idiotas da objetividade”, quanto o avistar dos barretes frígios se aproximando, foi para os sentinelas da Bastilha.  El Trinche deu tão certo que sua representação serve de incentivo a todos os que consideram que o esporte transcende aos números, dancinhas em redes sociais e a glória efêmera de uma conquista.

Trata-se de uma manifestação da cultura popular, e quão mais genuína ela for, maior a grandeza humana das relações que ela exibe.

Renato Marques é professor, humanista e contramajoritário.

Veja aqui matéria do El Pais quando da morte de El Trinche, em 2020.

https://brasil.elpais.com/esportes/2020-05-09/adeus-a-el-trinche-o-melhor-jogador-desconhecido-do-mundo.html

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