Bebida produzida com uvas orgânicas e sem adição de produtos químicos ganha espaço entre consumidores e até nos restaurantes estrelados
Por Flávia G. Pinho, compartilhado de Projeto Colabora
Na foto:Vinho branco com cor alaranjada da vinícola Era dos Ventos: estranheza inicial, com a maior exposição às cascas da uva, foi dando lugar a sucesso com sommeliers e consumidores (Foto: Divulgação)
Seis anos atrás, a chef Lis Cereja, proprietária da Enoteca Saint VinSaint, em São Paulo, surpreendeu muita gente ao lançar uma feira exclusivamente dedicada aos vinhos naturais. Em 2013, nem o termo era difundido no Brasil – e o nome do evento, Naturebas, entregava a perfil do público a que se destinava. Dentro do próprio restaurante, Lis reuniu não mais do que 20 produtores nacionais e estrangeiros, que puderam explicar ao público por que seus vinhos eram tão diferentes. Além de produzidos a partir de uvas orgânicas, são vinificados sem adição de qualquer composto químico – quem se encarrega da fermentação são as leveduras naturais do lugar.
De lá para cá, os vinhos naturais foram deixando o nicho dos apreciadores alternativos – e a feira Naturebas acompanhou o crescimento do mercado. Desde 2018, é realizada na Casa das Caldeiras, na Zona Oeste paulistana, ao longo de dois dias. A de 2019, que aconteceu em junho, reuniu 2000 visitantes e 110 expositores, sendo 30 nacionais. “Parte do público recorre aos vinhos naturais porque são mais saudáveis e sustentáveis, mas há também uma parcela de consumidores cansados da mesmice do vinho convencional”, comenta Lis.
Foi um dos primeiros vinhos naturais do Brasil. Era chocante, as pessoas amavam ou odiavam. A aceitação foi bem lenta. É claro que as pessoas acostumadas com a produção tradicional estranharam.
Devagarzinho, os vinhos naturais também foram ganhando espaço nas cartas dos restaurantes. Felipe Barreto, sommelier do premiado Maní, da chef Helena Rizzo, já aderiu, assim como Gabriela Monteleone, sommelier do grupo D.O.M., do chef Alex Atala. O italiano Marco Renzetti, chef e proprietário da Osteria del Pettirosso, em São Paulo, afirma que os naturais entraram no cardápio para ficar. O sommelier Lamberto Percussi, sócio da paulistana Vinheria Percussi, admite que anda encantado com os rótulos que tem provado. “São produtos únicos, divertidos, com muita expressão de território, porque a ausência de aditivos químicos potencializa sua identidade. Acabei ficando fã”.
Entre os produtores nacionais, um dos mais festejados é a vinícola gaúcha Era dos Ventos, que o enólogo Luis Henrique Zanini fundou em Bento Gonçalves (RS), em uma propriedade de família localizada na rota turística Caminhos de Pedra. Inspirado no que viu durante um estágio na França, ele começou a plantar os vinhedos em 2004 e fez a primeira vinificação do Era dos Ventos Peverella em 2007. Os primeiros restaurantes a servi-lo foram a Enoteca Saint VinSaint, em São Paulo, e os cariocas Roberta Sudbrack (já extinto) e Aprazível. “Foi um dos primeiros vinhos naturais do Brasil. Era chocante, as pessoas amavam ou odiavam. A aceitação foi bem lenta”, conta Zanini.
Quando comecei, éramos no máximo cinco produtores no país. Hoje, somos mais de 20. No começo, todos optavam pelos naturais em função da filosofia, mas vejo que agora tornou-se uma decisão de mercado
A cor alaranjada dos vinhos brancos, fruto da exposição maior às cascas das uvas, causava estranhamento, assim como a alta acidez. “É claro que as pessoas acostumadas ao paladar padronizado rejeitavam o vinho”, ele emenda. Mas esse tempo já passou. Hoje, a Era dos Ventos mantém-se como uma vinícola-boutique, produzindo oito rótulos que totalizam apenas 6 mil garrafas anuais. Mas eles já estão em cartas estreladas. Já são servidos no Picchi, no Pipo e no Esther Rooftop, em São Paulo, e nos cariocas Lasai, Oteque e Sud Pássaro Verde, entre outros. “Finalmente entenderam que os naturais não são vinhos de ET”, ele brinca.
A enóloga Marina Santos, da Vinha Unna, em Pinto Bandeira (RS), é outra que optou pela vinificação natural. Ela teve o primeiro contato com a técnica na Europa, onde pesquisava produção vinícola orgânica. Em 2015, no Primeiro Encontro Franco-Brasileiro de Vinhos Naturais, realizado em São Paulo, teve a certeza de que era seu caminho – conversou com produtores franceses considerados pesos pesados do setor, como Pierre Overnoy, Jean e Agnès Foillar e Marcel Richaud, e viu que poderia transgredir as lições da faculdade. “Na escola de enologia, você aprende que tudo fermenta mas, em um determinado momento, precisa usar aditivos. Com eles, vi que era possível fazer sem”. Os rótulos da Vinha Unna, entre eles o Lunações Chardonnay, o As Baccantes Cabernet Franc e o Canto da Sereia Barbera, exibem desenhos feitos à mão pela mãe de Marina. “Quando comecei, éramos no máximo cinco produtores no país. Hoje, somos mais de 20. No começo, todos optavam pelos naturais em função da filosofia, mas vejo que agora tornou-se uma decisão de mercado”, diz Marina.
Parte do público recorre aos vinhos naturais porque são mais saudáveis e sustentáveis, mas há também uma parcela de consumidores cansados da mesmice do vinho convencional
Não existe regulamentação para a produção de vinhos naturais, seja no Brasil ou em outros países. São as associações de produtores que determinam as próprias regras, o que pode variar bastante, principalmente no que diz respeito à quantidade máxima permitida de sulfito (ou dióxido de enxofre) – com ação antioxidante e bactericida, a substância é usada como conservante. Alguns produtores mais radicais optam pelo zero sulfito, enquanto a maioria admite pequenas quantidades. Na Vinha Unna, não há qualquer adição. “A fermentação natural já produz um pouco de sulfito espontaneamente. Para nós, essa quantidade é suficiente”, assegura Marina. Ela defende que, quanto menor o teor de sulfito, mais inofensivo será o vinho para o organismo. “Por isso, o vinho natural é digerido com mais facilidade e dá menos dor de cabeça”.
Tudo indica que os naturebas vão continuar crescendo no Brasil, a exemplo do que já acontece mundo afora. O primeiro desafio, por ora, é vencer o preconceito – quem dá o azar de provar um vinho natural ruim, o que ainda é comum, tende a pensar que toda a categoria será igual. “Há pessoas fazendo vinhos naturais bons e ruins, assim como na produção convencional”, lembra Lis Cereja. Por isso, vale a pena dar mais de uma chance – a satisfação é garantida, segundo a produtora da Vinha Unna. “São vinhos gastronômicos, que oferecem recursos incríveis de harmonização. Devagarzinho, as pessoas vão perdendo o ranço e descobrindo que uma mesma cepa pode gerar vinhos completamente diferentes, porque cada um terá forte conexão com o terroir”, afirma Marina.