O segundo crime da Escola Base, por Luís Nassif

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Estava sendo chocado o ovo da serpente para o início do jornalismo de esgoto, a partir de 2005 até a pandemia.

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Dirigido por Paulo Henrique Fontenelle, finalmente irá ao ar a verdadeira história da Escola Base. Será no dia 2 de junho no Canal Brasil. Ao contrário da auto-expiação chorosa do documentário anterior – focado na figura de Valmir Salaro, o principal repórter da cobertura do fato – “O Caso Escola Base” aprofunda a história, ouve todos os envolvidos, principalmente dá detalhes sobre o destino de cada acusado.

Com a escola destruída, tiveram que se desfazer de todos seus bens. Casamentos também foram desfeitos. Alguns passaram a viver de cestas básicas doadas pelos vizinhos. E não houve um gesto dos grandes veículos para reparar o dano infringido, em nome do aumento da audiência. Foram processados, recorreram para não pagar, até que as vítimas morreram sem receber.

É chocante o depoimento de uma das vítimas, que até hoje não recebeu a indenização.

  • Acho que nem tinha necessidade de entrar com processo. Se eles pensassem a gente não só como Ibope, mas como ser humano, fazer uma campanha, vamos reerguer todos eles. Todos erraram, vamos nos unir. Ia ser muito mais bonito, muito mais digno, mais consciente. Mas eu não sou dono da emissora. Sou apenas a Paula.

O documentário não passa pano para a mídia. Permite depoimentos críticos à mídia e autocríticas tardias dos principais verdugos da escola.

No dia 8 de abril de 1994 escrevi o primeiro artigo denunciando a cobertura da mídia, “Japonês da Aclimação e o mecenas“, comparando a louvação da mídia sobre um notório embusteiro, o banqueiro Edemar Cid Ferreira e a cobertura do caso Escola Base.

O japonês da Aclimação vai ajudar a brava sociedade brasileira a purgar seus erros e permissividades. Desconfiou-se em sua escolinha, donos professores e pais de alunos praticavam abusos sexuais contra pequenos alunos de quatro anos de idade. Um roteiro para Marquês de Sade nenhum botar defeito.

Não há nenhuma prova conclusiva para as acusações. Não há sequer laudos que comprovem definitivamente a prática de abusos sexuais.

Um exame comprovou dilatamento de um por um ânus de uma das crianças. Pode ser vestígio de penetração, seguramente não por parte de um adulto. Pode ser fruto de uma assadura. Depois disso, há apenas informações arrancadas de crianças de quatro anos por pais desesperados.

Há o quadro já conhecido de policiais que se deslumbram com episódios que podem lhe render popularidade e de cobertura jornalística burocrática que vale exclusivamente da versão oficial.

Mas pode haver algo de maior impacto, para policiais e jornalistas, do que a suposição de crianças de quatro anos – que poderiam ser filhos dos próprios leitores – sendo utilizadas em sessões de filmes pornográficos?

Não há nenhuma foto, nenhum filme que comprove a versão, mas o que importa? Como tem-se 50% de possibilidade de o japonês da Aclimação ser culpado, está-se cometendo apenas 50% de injustiça.

E toca-se a linchar o japonês e os pais de outros alunos de quatro anos, valendo-se desta grande prerrogativa, que é sentir-se fortalecido na companhia da unanimidade, para melhor poder exercitar o supremo gozo de participar de um linchamento, sem riscos e sem remorsos – uma espécie de realidade virtual da Disneyworld com vidas alheias, em que se vive a sensação de perigo, sem correr riscos.

Dois dias antes, tentei convencer a reportagem da TV Bandeirantes – da qual era comentarista – a apostar no japonês, ouvi-lo. De nada adiantou. No dia seguinte, um editor da Band me informou que uma repórter recebera dos advogados do japonês laudos do Instituto Médico Legal, desautorizando qualquer suspeito de abuso sexual. Mas não tiveram coragem de ir contra a maré. Na hora do meu comentário, no programa noturno da Band, antes de minha entrada apresentaram cenas do japonês indo preso. Deixei a economia de lado e fiz meu protesto contra a cobertura da mídia.

Segundo o livro de Alex Ribeiro, foi ali que se rompeu a unanimidade e o juiz ganhou coragem para libertar os donos da escola. Fontenelle conseguiu recuperar o comentário.

Autor do principal livro sobre o tema, “Caso Escola Base – os Abusos da Imprensa -, (se não me engano, ainda como TCC na faculdade) Alex Ribeiro comete apenas um engano: o de julgar que a autocrítica em torno do episódio melhorou a cobertura da mídia.

Algum tempo depois, houve episódio mais escabroso, o caso do Bar Bodega, com o mesmo Valmir Salaro repetindo o processo de criminalização de inocentes – no caso, jovens pretos de favela. Na ocasião o promotor Eduardo Araújo da Silva mandou soltar os suspeitos e foi alvo de um linchamento midiático. Saí em sua defesa. Anos depois, encontrei-o em um shopping e ele contou o que foi a pressão do Ministério Público Estadual contra ele, acusado de comprometer a imagem da instituição. Só quando saiu meu artigo, a pressão amainou.

No dia 17 de novembro de 1996 publiquei o artigo “Mais um erro da imprensa“. Nele, dizia:

No meio da semana, nós, da imprensa, abrimos chamadas burocráticas em rádios, televisões e jornais: “Mais um erro da polícia”.

Referíamo-nos ao caso Bodega: dois rapazes de classe média assassinados em um assalto; sete suspeitos presos, quase todos pretos, quase todos pobres.

Algumas semanas atrás, um promotor corajoso opinou por sua libertação, denunciando que tinham sido vítimas de tortura. E foi alvo de críticas candentes.

Soltos os suspeitos, o caso muda de delegacia e se chega a novos suspeitos. E as chamadas burocráticas na imprensa repetem mais uma cerimônia de lava-mãos: mais um erro da polícia.

Só isso? E as reportagens que condenaram a todos antecipadamente? Como ficamos nós, como fica nossa responsabilidade social?

Os sete jovens confessaram o crime sob tortura. Durante dias, jornalistas se tornaram íntimos do delegado. Receberam as informações que ele quis passar, frequentaram a delegacia, tiveram acesso aos suspeitos. E não saiu nem uma linha sequer informando a opinião pública de que tinham sido torturados!

O que está acontecendo com a gente? Anos de resistência contra a ditadura, luta contra a censura, pelos direitos humanos, tudo reduzido a uma busca sôfrega de sensacionalismo, a um vale-tudo, no qual tudo é permitido, desde que seja obtida a matéria de impacto.

Processos reiterados de linchamento, com jornalistas comportando-se como policiais ou como linchadores vulgares.

À noite, no Jornal Nacional, houve uma reportagem repetindo o mesmo tom de indignação em relação aos abusos da imprensa. Autor: Valmir Salaro.

De lá para cá, com intensidades diversas repetiram-se as cenas de linchamento, que narro em meu livro “O jornalismo dos anos 90”. Estava sendo chocado o ovo da serpente para o início do jornalismo de esgoto, a partir de 2005 até a pandemia.

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